O caso do estranho no supermercado
1
Mário Russo sempre adiava até o limite do insustentável suas idas ao supermercado. Aquela tarefa trivial sempre teve para ele a aparência irritante de uma gigantesca perda de tempo. "Por que ainda não inventaram uma forma das coisas simplesmente aparecerem na casa da gente?", pensava irritado entre as gôndolas abarrotadas.
Sentia-se num labirinto. Incomodava-se por ter que se concentrar na lista feita pela esposa zelosa. "Compra da marca tal, Mário, é mais barata e tão boa quanto a outra", ela recomendava todas as vezes. Com o papel cheio de produtos anotados, Mário se imaginava o próprio Perseu na cova da Medusa com um mapa entre os dedos. Ou, por outra, Teseu na caça ao Minotauro.
O supermercado não estava muito movimentado naquele dia. Uma senhora com o filho de quatro anos dentro do carrinho de compras; um casal de mãos dadas com uma econômica cesta usada pra compras menores; Um grupo alegre de adolescentes no setor de bebidas, certamente pensando num jeito de sair dali com uma garrafa de cerveja ou vodka. Mais adiante um homem numa jaqueta de couro pegando uma lata de feijoada pronta; um rapaz olhando o rótulo de um vidro de palmito; um idoso arqueado escolhendo tomates.
Mário se distraía observando essas pessoas enquanto seguia seu próprio caminho por aquele local de provação. Ainda faltavam os produtos de limpeza pra fechar a compra. Ficavam do outro lado da loja, e o inspetor seguiu pra lá em passos largos, tentando reduzir ao mínimo o tempo gasto com aquilo.
Enquanto olhava as opções de detergente de pia, algo lá no fundo de sua mente começou a incomodá-lo. No inicio era como o leve zumbido de um pernilongo, mas foi aumentando de intensidade como um alarma dentro de sua cabeça, impossível de ser ignorado. O que era aquilo? O que o estava deixando tão aturdido de repente?
Mário ficou parado olhando para o vazio, com o frasco de detergente na mão. De repente, colocou o produto de volta na gôndola e voltou para o lugar onde estavam o idoso dos tomates, o rapaz do palmito e o homem da jaqueta de couro.
O homem da jaqueta de couro. Mário o viu por fração de segundo, apenas de perfil, e não deu nenhuma importância àquilo num primeiro momento. Seu cérebro precisou da caminhada até os detergentes pra processar aquela informação visual e dar o resultado inesperado: ele já tinha visto aquele rosto antes. Mas onde?
A mente de Mário Russo divagou até a conversa que teve por telefone na semana passada com Ricardo Nunes, um colega da polícia do Rio de Janeiro.
- Já estou entregando os pontos, Mário - disse Ricardo com a voz cavernosa que Mário conhecia há tempos. - O sujeito simplesmente evaporou.
- Tem certeza que ele saiu do Rio, Ricardo? As favelas daí são esconderijos complexos.
- Minhas fontes dizem que ele deu um tempo quando viu que o nosso cerco estava se fechando em torno dele, colega. Dizem que ele foi pro interior aí de São Paulo. Por isso tô te ligando. Vou te mandar um resumo da capivara e a foto do sujeito. Seu fax tá com papel?
Mário percebeu a fina ironia do policial carioca. De fato, a delegacia não andava muito bem servida de recursos básicos. O cafezinho só existia porque ele trazia de casa. Formulários de identidade, caixas de arquivo morto, pastas-padrão de processos criminais, ocasionamente faltavam… papel na máquina de fax também.
- Pode mandar, Ricardo, o fax tá em ordem sim. - respondeu, levemente constrangido.
Logo se seguiu o ruído da máquina imprimindo as informações. O fax era velho mas pelo menos existia. Em muitas outras delegacias, as informações só eram trocadas por telefone ou telegrama. Imagens, só pelo correio. Coisas de quando a internet ainda era, no máximo, um possível roteiro para ficção científica.
Mário arrancou a folha e leu o seu conteúdo. O homem se chamava Cláudio Rezende. 38 anos. Vulgo Kerouac - porque tinha fama de ser um leitor inveterado e fã do autor da geração beat Jack Kerouac. Chefe do tráfico no morro do Pavão-pavãozinho - uma ilha de miséria cercada da ostentação de Copacabana e Ipanema em plena zona sul do Rio. O bandido é perigoso. Suspeito de ter ordenado mais de vinte assassinatos. Teria matado, ele próprio, uns três desafetos que disputavam o comando do tráfico naquela área.
O inspetor passou a analisar a foto do meliante. Mário sempre teve uma boa memória para imagens. Viu no papel do fax um homem de meia idade, com fartos cabelos pretos, barba espessa, sobrancelhas grossas que se uniam numa fronte tensa. Nariz adunco e lábios grossos. Parecia um turco ou um árabe, mais do que um traficante carioca.
Mário abriu a gaveta e jogou a folha dentro. Tirou do bolso uma pastilha de menta (que vinha substituindo os cigarros já há mais de seis meses) e constatou que provavelmente aquelas informações não teriam nenhuma utilidade para ele. O que levaria um bandido da capital fluminense a escolher Campos do Jordão como refúgio? Ainda mais que se trata de uma cidade turística, onde não é impossível esbarrar com algum conterrâneo e ser reconhecido de uma hora pra outra.
"Não", pensou Mário. "Não acredito que eu vá topar com esse cara por aqui".
2
No supermercado, Mário reparou primeiro na barba grossa. Depois notou os cabelos ondulados. Ainda não tinha dado uma boa olhada na cara do homem de jaqueta, mas algo dentro dele o levou a tentar uma aproximação. Fingiu selecionar alguns pepinos na banca logo à frente da gôndola onde o homem pegava rapidamente pacotes de batata frita. Mas o sujeito saiu dali rumo à entrada do supermercado, sem olhar pra trás. "Caralho", ruminou Mário, "não deu pra ver a cara dele".
O policial jogou os pepinos de volta na bancada e saiu atrás do suspeito, mantendo uma distância segura. Entrou na fila do caixa logo atrás dele e esperou pacientemente que o outro se virasse, para que pudesse analisar melhor suas feições.
Passaram-se alguns minutos até que a oportunidade se apresentou. Alguém atrás de Mário derrubou umas latas de conserva e o barulho fez com que o homem de jaqueta se voltasse para ver o que tinha acontecido. Mário, instintivamente, não se voltou para o desastrado atrás dele, mas manteve-se observando o suspeito. Dessa forma conseguiu avaliar as sobrancelhas, o nariz adunco, os lábios grossos. Não teve dúvidas: estava diante de Kerouac. Imediatamente seu corpo relaxou, como sempre acontecia em momentos de tensão. Uma paz quase angelical se apossou do inspetor enquanto ele conjecturava o que fazer dali em diante.
O inconveniente é que Kerouac também desconfiou de algo. Quando olhou pra trás e viu o sujeito que tinha derrubado as latas, notou que Mário não tinha feito o mesmo. Mais ainda, percebeu que aquele sujeito um pouco mais baixo que ele, usando um paletó meio surrado e uma gravata fora de moda, fitava-o com certa reserva. Para os olhos acostumados ao mundo do crime, aquela postura, aquelas roupas e aquele olhar penetrante eram como um distintivo. Kerouac percebeu que tinha um policial em seus calcanhares.
Mário também notou que tinha sido descoberto. Os próximos momentos foram de tensão. Chegou a vez de Kerouac pagar as compras. Ele passava os produtos com uma pressa irritada. Mário, atrás dele, permanecia tranquilo. Tinha pegado uma caixa de chicletes e uma revista, para tentar justificar sua presença na fila - o carrinho das compras tinha ficado do outro lado do supermercado. Sabia que aquilo o denunciava ainda mais: tanto tempo na fila pra comprar só aquelas besteiras? Mas, paciência, as cartas estavam na mesa.
Quando Kerouac terminou de passar as compras, pagou arremessando uma nota graúda para o caixa:
- Fica com o troco - grunhiu antes de se dirigir rapidamente para a saída.
Mário jogou a revista e a caixa de chicletes sobre o balcão do caixa e foi atrás do traficante. Este olhou para trás e viu que estava sendo seguido. Deu alguns passos adiante e, de repente, saiu correndo. Pegou o rumo das escadas que levavam ao térreo do supermercado e ao estacionamento descoberto.
Mário conhecia bem aquela loja. Sabia que a escada era composta de dois lances. O segundo deles mudava a direção da descida para a esquerda. Naquele ponto não havia muita gente. Era o local ideal para a abordagem. O inspetor pegou o revólver 38 que levava num coldre preso ao peito.
- Kerouac! - gritou Mário. - Pára aí senão eu atiro.
Kerouac obedeceu mas não se voltou para o policial.
- Mãos pra cima e se vira devagar - ordenou Mário.
Kerouac ergueu as mãos e começou a se voltar lentamente.
Nesse momento duas mulheres começaram a subir a escada logo atrás do traficante, conversando alegremente. Kerouac aproveitou a oportunidade para sacar uma pistola que levava presa no cinto e disparar contra o policial. Mário não quis revidar, correndo o risco de atingir as mulheres.
Gritaria. O tiro passou zunindo ao lado da cabeça de Mário e se alojou atrás dele, na parede. Kerouac atirou de novo. Dessa vez a bala fez um rasgo no paletó do inspetor e abriu outro buraco na parede lateral à escada.
O traficante se voltou para a saída e desceu correndo as escadas, pulando os degraus. Mário saiu no encalço do bandido. Não tinha como chamar reforços. O rádio estava no carro.
Kerouac foi até a beirada do estacionamento, que ficava elevado em relação à rua, e pulou para a calçada. Uns salto de três metros. Mário se aproximou da cerca que limitava o estacionamento e olhou pra baixo. "Merda", disse, sabendo que se pulasse atrás do bandido seus joelhos não permitiriam a menor chance de uma perseguição. Sem pensar, apontou o revólver, prendeu a respiração e atirou.
3
Três dias depois do incidente, Mário estava ao telefone com o colega do Rio.
- Trabalho bonito, Mário. O Kerouac já tá aqui no xadrez e vai ser transferido pra Bangu logo logo. Ainda manca do tiro na bunda que levou. - disse Ricardo entre risos.
- Vê se não deixa o sujeito escapar, Ricardo. Já tenho uma lista suficientemente grande de inimigos pra me preocupar por aqui.
- Fica frio. Tem uma recompensa pela captura dele. Vai chegar na tua conta ainda esta semana. Você mostrou sangue frio nesse caso, meu chapa.
- Não foi nada, colega. Prender bandido pra mim é o trivial. O difícil foi ter que voltar ao supermercado no dia seguinte pra fazer a compra do mês. Duas idas ao supermercado na mesma semana acabaram com a minha coragem - respondeu Mário, rindo também.
ANTES DO FIM
Um mês depois da prisão, Kerouac foi morto durante uma rebelião na penitenciária Bangu-1. Homens com camisetas em volta da cara cortaram a cabeça do traficante e a exibiram no teto do pavilhão norte, como um troféu.
FIM
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