O caso da família desaparecida
"Uma vez eliminado o que é impossível, a hipótese restante, por mais improvável que seja, deve ser a verdadeira".
Sherlock Holmes, "O signo dos quatro".
1
De repente Mazinha teve um sobressalto, como se se lembrasse de algo importante. Olhou pro velho relógio na parede da cozinha, largou a faca de descascar batatas e se virou para a porta que dava acesso ao pomar.
- Fernanda, Maurício, venham pra dentro que já é tarde.
Os dois filhos são bons e carinhosos. Muito arteiros como qualquer criança na idade deles, mas isso também é sinal de saúde. Não, Mazinha não pode reclamar da vida que leva ao lado do marido e dos filhos, ali naquele sítio afastado no Zé da Rosa. Os dias são todos muito parecidos: acordar cedo, ordenhar a Mimosa, fazer o café, ver o esposo ir pra roça de mandioca, colocar o uniforme nas crianças e esperar a carroça do Nicolau, que leva as duas para o ponto onde pegam o ônibus da escola rural. Uma vida pacata, saudável… e entediante muitas vezes.
Mazinha olhou de novo para a porta. Chamou pelos filhos mais uma vez. Nada de resposta.
Foi então que a dona de casa se deu conta de que, normalmente àquela hora, o Tibúrcio já estava em casa. Onde andará o marido? Talvez tenha passado na venda do Brás pra tomar uma cachaça. Logo ele volta.
Mais um quarto de hora se passou e nada das crianças. Já estava ficando escuro. Preocupada, Mazinha foi até a porta e olhou para fora. A noite estava bonita, estrelada, aquele ar frio do crepúsculo fez os pelos de sua nuca se eriçarem. Sem entender bem por quê, Mazinha sentiu medo. Foi caminhando entre as árvores do pomar até a cerca do sítio. Nem sinal dos filhos. Resolveu pegar a trilha que levava até o córrego. Caminhada de 10 minutos. Olhou para as águas plácidas resvalando sobre as pedras, cristalina e transparente. Teve um sobressalto. "será que entraram na água?" Olhou em volta, do outro lado da margem, no bosque próximo. Não havia viva alma naquele pedaço de mundo.
Agora Mazinha estava realmente alarmada. Voltou pra casa rapidamente. "Eles já devem estar em casa", tentou se convencer enquanto fazia o caminho de volta.
Chegando à velha residência, chamou de novo pelos filhos e constatou que eles não tinham aparecido. Pensou em pedir ajuda, mas o sítio não tinha telefone. O vizinho mais próximo, Nicolau da carroça de leite, morava a 20 quilômetros dali. Mazinha chegou a pensar em montar o Batoré, o velho alazão do sítio, mas desistiu da ideia. Sabia que a chance de levar um tombo e piorar a situação era enorme. Resolveu esperar.
Já passava de meia-noite. As lágrimas no rosto apavorado de Mazinha eram resfriadas pelo sereno da madrugada que começava. O marido, aquele imprestável, não apareceu até aquela hora. Normalmente quando ele resolvia fazer uma parada na venda, chegava antes das 11 da noite em casa. Justo hoje resolveu tomar chá de sumiço. E os filhos, onde estariam, meu Deus do céu?
Mazinha acordou toda dolorida, depois de uma noite de sono intermitente na cadeira da cozinha.
- Tibúrcio! Maurício! Fernanda!
Nenhuma resposta. Ela começou a chorar de novo. Era sábado, e naquele dia o Nicolau não passaria por ali para pegar as crianças, de modo que a única opção da dona de casa era se virar sozinha. Botou uma roupa melhorzinha, deu um jeito no cabelo e pegou a estrada, rumo ao ponto de ônibus, quatro quilômetros a nordeste do sítio. A caminhada foi longa, o velho ônibus demorou a chegar. Mazinha embarcou rumo ao centro da cidade.
2
Três da tarde. Júlia bocejou. Aquele plantão de sábado estava especialmente monótono. Só apareceu um homem notificando a perda de documentos. Um dia tranquilo demais. O Lima, com certeza, estava fazendo "diligências" na própria casa, roncando como um porco em vez de ficar a postos ali na delegacia como ela. Essa sem dúvida era uma vantagem do cargo de investigador. Não precisava ficar ali confinado como um peixe num aquário.
Sem nada para fazer Júlia deu uma volta pela sala e foi em direção à copa. Pegou um café já meio morno na garrafa e tomou um gole com uma careta. "Como pode ter gente viciada nisso?". Saiu dali e foi à direita, até a mesa do chefe dos investigadores. Pegou o porta-retrato onde se via a figura de um homem magro, não muito alto, abraçado a uma sorridente mulher loira de cabelos curtos. Em volta do casal, uma adolescente e duas crianças. "Você tem uma bela família, Mário".
Júlia não conseguiu evitar de pensar no chefe. Um homem bonito. Bem mais velho que ela, mas bonito. Meio bruto de vez em quando, se bem que com ela sempre foi um doce. "Acho que ele gosta de mim", pensou, mas logo afastou esse sentimento: "para com isso Júlia. O cara é casado, e ainda por cima seu chefe. Quer se meter em encrenca? Para de pensar besteira".
Estava assim perdida em pensamentos, com o porta-retrato na mão, quando foi surpreendida pela campainha do balcão. Levou um susto, como quem tivesse sido flagrada cometendo um ato imoral, e deixou cair sobre a mesa o porta-retrato. Um leve trinco apareceu no vidro que protege a foto. "Merda!", pensou. Olhou para o balcão um tanto contrariada. Colocou o porta-retrato no lugar e foi até a mulher que esperava por atendimento.
- Minha família sumiu - disse a mulher que aparentava ter mais de cinquenta anos, embora na realidade não passasse dos 35.
- Explique, senhora. Quem sumiu? Seu marido?
- Ele também. Sumiu meu filho, sumiu minha filha, sumiu ele… Desde ontem à tardinha que não vejo ninguém. Estou desesperada! - disse Mazinha, não segurando mais um soluço sentido.
- Calma minha senhora, não faz tanto tempo assim… as crianças não estariam na casa de algum amiguinho? Não teriam fugido por pura pirraça? Crianças são assim…
- Dona, eu moro no meio do mato. Vizinho mais próximo é quase 30 quilômetros de caminhada. Tinha jeito disso acontecer não. Sumiram mesmo, tô dizendo.
- Bom, e o seu marido? Não terá se metido em algum buteco e perdido a hora?
- Meu marido nunca dormiu fora de casa em 15 anos de casamento. Ele dá suas escapadas sim, mas no máximo meia-noite está comigo. Só que esta noite eu passei sozinha, na cadeira da cozinha, esperando todo mundo. E ninguém apareceu! - disse, chorando sem parar.
- Calma minha senhora. Vamos anotar aqui as informações que a gente vê o que se faz.
Mazinha contou que, como sempre, na véspera havia chamado os filhos pra dentro por volta de cinco e meia da tarde. Como ninguém respondeu, ela começou a procurar. Foi até um córrego na região e não viu nenhum sinal dos dois. Preocupada, voltou pra casa e começou a esperar pelo marido. Mas ele tampouco apareceu. Ela esperou até não aguentar de cansada e cair no sono na cadeira da cozinha. Acordou toda dolorida e, quando viu que ainda estava sozinha, resolveu vir à polícia pedir ajuda.
Júlia anotou tudo. Foi até o rádio amador e chamou pelo investigador de plantão. Demorou um pouco até o Lima atender. Júlia notou o sono na voz do policial e contou rapidamente o que tinha acontecido.
- Encaminha ela pros bombeiros, porra! - respondeu Lima, de mau humor.
- Mas não é bom você também dar uma olhada nesse caso, Lima? São três sumidos.
- Não deu nem 24 horas do desaparecimento. Amanhã, se eles não estiverem de volta, a gente vê o que faz.
Júlia desligou o rádio, irritada com o desinteresse do policial. Orientou a mulher a avisar o corpo de bombeiros, e informar principalmente que tem um córrego com corredeira perto da casa. Talvez eles organizassem uma busca.
Sem parar de chorar por um minuto, e sem forças para responder, Mazinha virou as costas para a policial e saiu da delegacia, cabeça baixa, passos lentos, um leve tremor sacudindo os ombros enquanto ela soluçava.
A escrivã ficou de coração partido, mas deixou a outra ir embora sem fazer nada. No livro de ocorrências, porém, fez uma anotação sobre o caso da mulher, com o endereço e o nome dela. Meia hora depois, tinha esquecido o assunto.
No corpo de bombeiros os soldados não foram muito mais prestativos. Anotaram as informações e pediram que Mazinha voltasse na segunda-feira se ninguém aparecesse. A mulher ficou angustiada mas, sem alternativa, dirigiu-se para o ponto de ônibus onde esperou pelo coletivo que a levaria de volta para o sítio. O sol já soltava os últimos raios no horizonte quando ela finalmente embarcou.
Sem nada para fazer Júlia deu uma volta pela sala e foi em direção à copa. Pegou um café já meio morno na garrafa e tomou um gole com uma careta. "Como pode ter gente viciada nisso?". Saiu dali e foi à direita, até a mesa do chefe dos investigadores. Pegou o porta-retrato onde se via a figura de um homem magro, não muito alto, abraçado a uma sorridente mulher loira de cabelos curtos. Em volta do casal, uma adolescente e duas crianças. "Você tem uma bela família, Mário".
Júlia não conseguiu evitar de pensar no chefe. Um homem bonito. Bem mais velho que ela, mas bonito. Meio bruto de vez em quando, se bem que com ela sempre foi um doce. "Acho que ele gosta de mim", pensou, mas logo afastou esse sentimento: "para com isso Júlia. O cara é casado, e ainda por cima seu chefe. Quer se meter em encrenca? Para de pensar besteira".
Estava assim perdida em pensamentos, com o porta-retrato na mão, quando foi surpreendida pela campainha do balcão. Levou um susto, como quem tivesse sido flagrada cometendo um ato imoral, e deixou cair sobre a mesa o porta-retrato. Um leve trinco apareceu no vidro que protege a foto. "Merda!", pensou. Olhou para o balcão um tanto contrariada. Colocou o porta-retrato no lugar e foi até a mulher que esperava por atendimento.
- Minha família sumiu - disse a mulher que aparentava ter mais de cinquenta anos, embora na realidade não passasse dos 35.
- Explique, senhora. Quem sumiu? Seu marido?
- Ele também. Sumiu meu filho, sumiu minha filha, sumiu ele… Desde ontem à tardinha que não vejo ninguém. Estou desesperada! - disse Mazinha, não segurando mais um soluço sentido.
- Calma minha senhora, não faz tanto tempo assim… as crianças não estariam na casa de algum amiguinho? Não teriam fugido por pura pirraça? Crianças são assim…
- Dona, eu moro no meio do mato. Vizinho mais próximo é quase 30 quilômetros de caminhada. Tinha jeito disso acontecer não. Sumiram mesmo, tô dizendo.
- Bom, e o seu marido? Não terá se metido em algum buteco e perdido a hora?
- Meu marido nunca dormiu fora de casa em 15 anos de casamento. Ele dá suas escapadas sim, mas no máximo meia-noite está comigo. Só que esta noite eu passei sozinha, na cadeira da cozinha, esperando todo mundo. E ninguém apareceu! - disse, chorando sem parar.
- Calma minha senhora. Vamos anotar aqui as informações que a gente vê o que se faz.
Mazinha contou que, como sempre, na véspera havia chamado os filhos pra dentro por volta de cinco e meia da tarde. Como ninguém respondeu, ela começou a procurar. Foi até um córrego na região e não viu nenhum sinal dos dois. Preocupada, voltou pra casa e começou a esperar pelo marido. Mas ele tampouco apareceu. Ela esperou até não aguentar de cansada e cair no sono na cadeira da cozinha. Acordou toda dolorida e, quando viu que ainda estava sozinha, resolveu vir à polícia pedir ajuda.
Júlia anotou tudo. Foi até o rádio amador e chamou pelo investigador de plantão. Demorou um pouco até o Lima atender. Júlia notou o sono na voz do policial e contou rapidamente o que tinha acontecido.
- Encaminha ela pros bombeiros, porra! - respondeu Lima, de mau humor.
- Mas não é bom você também dar uma olhada nesse caso, Lima? São três sumidos.
- Não deu nem 24 horas do desaparecimento. Amanhã, se eles não estiverem de volta, a gente vê o que faz.
Júlia desligou o rádio, irritada com o desinteresse do policial. Orientou a mulher a avisar o corpo de bombeiros, e informar principalmente que tem um córrego com corredeira perto da casa. Talvez eles organizassem uma busca.
Sem parar de chorar por um minuto, e sem forças para responder, Mazinha virou as costas para a policial e saiu da delegacia, cabeça baixa, passos lentos, um leve tremor sacudindo os ombros enquanto ela soluçava.
A escrivã ficou de coração partido, mas deixou a outra ir embora sem fazer nada. No livro de ocorrências, porém, fez uma anotação sobre o caso da mulher, com o endereço e o nome dela. Meia hora depois, tinha esquecido o assunto.
No corpo de bombeiros os soldados não foram muito mais prestativos. Anotaram as informações e pediram que Mazinha voltasse na segunda-feira se ninguém aparecesse. A mulher ficou angustiada mas, sem alternativa, dirigiu-se para o ponto de ônibus onde esperou pelo coletivo que a levaria de volta para o sítio. O sol já soltava os últimos raios no horizonte quando ela finalmente embarcou.
3
Era a primeira semana do mês de julho. Plena temporada de inverno na estância. A cidade estava tão lotada que os turistas de última hora só conseguiram hospedagem na vizinha e bucólica Santo Antonio do Pinhal, quilômetros abaixo na Serra da Mantiqueira.
Nessa época a cidade importava alguns dos principais defeitos das grandes cidades: trânsito caótico, falta de vagas pra estacionar e fila para tudo: de farmácias a restaurantes; de bancas de revista a malharias. As casas de chocolate caseiro no bairro turístico de Capivari ficavam apinhadas de gente. Muitos turistas elegantes, usando luvas, mulheres com saias de lã e botas compridas, homens de sobrecasaca, jovens em jaquetas, gorros de lã, calças jeans… Um desfile interminável de sapatos de couro. As estreitas calçadas em torno do Baden Baden ficavam intransitáveis de tão cheias. As pessoas iam parar no meio da rua disputando espaço com os carros. As mesas dos bares ocupavam o pouco espaço que restava das calçadas, e assim todos se misturavam, transeuntes e clientes, numa balbúrdia hipnótica. Alguns jovens passeavam com garrafas de vodka nas mãos - provavelmente sem dinheiro para os drinks caros dos bares de Capivari, mas dispostos a se divertir e beber. Alguns jordanenses tentavam se encaixar naquele universo alienígena, tentando fazer-se passar por turistas. Mas apesar das roupas caras e do esforço por parecerem de fora, o jeito de andar, de falar e até de pensar denunciavam esse nativos desnaturados.
Nessa efervecência Campos do Jordão mergulhava sua alma até o pescoço. E tirava daqueles bolsos o sustento do ano inteiro. Em julho o comércio vendia mais do que em todos os outros meses do ano somados. Nem mesmo as lojas itinerantes, que traziam para a cidade estandes de carros importados, parques de diversões e casas noturnas, ofuscavam o ganho local. Tinha riqueza pra todo mundo, não havia por quê brigar. Para dizer a verdade, os comerciantes de ocasião que se instalavam apenas em julho no município, eram atrações a mais. Completavam a volta no círculo do dinheiro.
O inspetor Mário Russo nunca gostou daquela balbúrdia. Sempre preferiu a cidade vazia, com suas brumas matinais, seu frio embriagador, suas paisagens alpinas. Um cenário que compensava a aversão que tinha dos jordanenses. Costumava pensar que todo paraíso tinha seu purgatório, e o de Campos do Jordão era o povo que ocupava aquele trecho de montanha. Achava-os medíocres, estúpidos, pouco imaginativos, destituídos de um mínimo de ambição ou criatividade. Havia exceções, é claro, mas que só confirmavam a regra.
Por outro lado havia beleza naquela simplicidade ingênua. Mesmo os que se achavam muito sofisticados na verdade olhavam para os lados, verificando se alguém observava o quanto eram "descolados" e "diferentes" do restante da população. E nessa necessidade de aceitação, expunham o germe das terras altas em que nasceram. Era como os jordanenses que tentavam se misturar aos turistas em busca de um status que pouco ou nada significava, se a gente pensasse com calma sobre o assunto.
De qualquer forma, aquele espírito plácido, aquela propensão ao marasmo, aquela falta de idealismo e ambição, tinham um ponto positivo que perdoava qualquer defeito: aquela postura protegia a natureza exuberante do lugar, mais do que qualquer lei ambiental.
"Não vamos mudar nada! Já está lindo desse jeito". E quem poderia criticá-los por pensar assim? Quem poderia desmentí-los? Estavam cobertos de razão. E por isso, é correto dizer que Campos do Jordão só era o que era por causa do povo que nela vivia. Qualquer outro povo já teria destruído há muito tempo aquela riqueza natural e divina.
Mário fazia essas conjecturas quando chegou à delegacia. Nem notou o trajeto de casa até ali, tão absorto em pensamentos. Estacionou e foi direto para a entrada, onde Júlia já arrumava os boletins do último plantão.
Como estava bonita com aquele cabelo solto nos ombros, Mário pensou. Ela devia usá-lo assim mais vezes, em vez do constante rabo-de-cavalo que ostentava.
Júlia pareceu perceber que estava sendo observada e, inconscientemente, passou a mão pelos cabelos que lhe caíam sobre o rosto enquanto ajeitava os documentos sobre a mesa. Um leve rubor a deixou ainda mais bonita, e Mário fez um esforço para tirar os olhos dela. Pegou o jornal sobre o balcão e deu bom dia.
- O livro de ocorrências, Júlia?
- Na sua mesa, chefe.
Mário foi até a cozinha, pegou uma xícara de café e se dirigiu para a mesa no fundo da ampla sala. Olhou as manchetes insípidas do jornal local e abriu o livro de ocorrências:
- um furto a uma casa de aluguel para temporada.
- dois furtos de carteira - prejuízo de uns poucos reais e documentos.
- furto de bicicleta.
- perda de documentos.
- desinteligência entre marido e mulher.
- desaparecimento
No meio daquelas ocorrências monótonas e triviais, o desaparecimento se destacava naturalmente. Mário pediu mais detalhes para Júlia.
- Uma senhora esteve aqui e disse que o marido e dois filhos tinham sumido. Passei um rádio pro Lima - ele não estava aqui - e ele falou pra ela voltar outro dia se ninguém aparecesse mesmo. Fazia menos de 24 horas do sumiço. Eu fiquei com dó e disse pra ela tentar ajuda nos bombeiros. Parecia tão desesperada! Chorava sem parar.
Mário olhou para a anotação no livro e tamborilou com os dedos sobre o tampo da mesa, como costumava fazer quando pensava sobre algo. Enfiou a mão no bolso e tirou uma caixinha de pastilhas de menta. Jogou uma na boca e ofereceu a caixinha para Júlia, que recusou.
- Tudo bem. Obrigado. - disse ele. Resolveu ver o que aconteceria. Se a mulher voltasse, pensaria em como ajudá-la. Talvez a família já tivesse aparecido e ela nem avisasse. Isso era muito comum.
O dia transcorreu lento e sem novidades até às 3 da tarde, quando a mulher que havia notificado o triplo desaparecimento apareceu na delegacia. Mário não precisou de nenhuma informação para deduzir que era ela, e que os três continuavam sumidos. A expressão no rosto de Mazinha falava por si.
"Bom, parece que o caso é grave", pensou, levantando-se em direção ao balcão onde Júlia já começava a ouvir a mulher.
Meia hora depois Mário pedia ajuda ao capitão Borges, do corpo de bombeiros, para organizar uma busca pelo fundão do Zé da Rosa.
- Leve o bote por via das dúvidas, capitão. A mulher informou que há um córrego por ali.
Mário também pediu ajuda à polícia militar e designou o Lima e o Sandro pra acompanhar o trabalho. Ele próprio entrou na viatura com Mazinha e a levou até o sítio. Durante o caminho aproveitou para repetir algumas perguntas que já tinham sido feitas por Júlia na sexta-feira: "alguma desavença com o marido? Ele costumava sumir por tanto tempo? E os filhos, algum amiguinho ? poderiam estar escondidos na casa de alguém? Houve briga, já fugiram de casa alguma vez?
A resposta para todas as peguntas, mais uma vez, foi negativa.
Fazia tempo que o inspetor não usava a estrada do Zé da Rosa. Se ele bem se lembrava, esteve por ali pela última vez durante o Caso do Flaconete de Cocaína. Lembrava-se que a estrada era asfaltada e bem sinalizada, mas perigosa. Cheia de curvas fechadas. Margeada por uma pirambeira das maiores. Quando chegava ao fundo do vale o asfalto desaparecia, dando lugar a uma esburacada estrada de terra, pisoteada por gado leiteiro e cheia de sulcos das rodas de carroças. Mário passou pelo último ponto de ônibus; notou que ainda teve que rodar muito a baixa velocidade por um caminho em condições cada vez piores, até chegar à porteira que dava acesso ao sítio. Desceu do carro, abriu a porteira, voltou ao volante e entrou pelo pomar. Deixou a porteira aberta atrás de si, depois de perguntar gentilmente se havia alguma criação que pudesse escapar por ali.
- Não, a vaca e o cavalo estão presos, e as galinhas não têm lugar melhor pra ir não. - respondeu Mazinha. Mário achou graça naquela resposta matuta e sorriu.
O inspetor queria dar uma boa olhada na casa antes que sua equipe chegasse. Pensava melhor com silêncio e sem companhia. A dona da casa mostrou para ele a cozinha, a ampla sala de pé direito alto e poucos móveis, O curto corredor que levava aos dois quartos, o do casal e o dos filhos. No quarto das crianças, as mochilas de escola sobre as camas arrumadas. Alguns brinquedos numa caixa, gibis da Turma da Mônica, Tio Patinhas, Mickey Mouse. Um guarda-roupa velho com uma porta meio solta e um espelho trincado.
No quarto do casal, a cama ainda desarrumada. Uma pequena cômoda com uma escova de cabelos, um copo e um porta-retratos. O guarda-roupa era maior que o das crianças, mas estava quase vazio. Dentro dele, à esquerda as roupas do marido: umas camisas, calças velhas e um único paletó. Um saco preto guardava algumas blusas de lã mal dobradas. Do lado direito, duas blusas femininas penduradas, uns vestidos, umas saias, e duas gavetas semiabertas em que se adivinhava a presença de roupas íntimas.
Mário achou aquela inspeção suficiente e pediu para ver a cozinha. Viu a mesa e a cadeira onde Mazinha disse ter adormecido de sexta para sábado. Olhou a cristaleira sem vidraças, recoberta por um pouco de pó e com xícaras, copos e pratos de diferentes tamanhos em seu interior, dispostos numa desordem que, de tão desordenada, parecia esconder algum método secreto de arrumação. O detetive foi até a pia, onde a louça do café da manhã ainda esperava ser lavada, e olhou pela janela que dava para os fundos da casa. Um terreno bastante amplo com mais árvores frutíferas e um belo canteiro de flores diversas. Pendurado na parede ao lado da janela Mário viu um faqueiro. Tamborilou com os dedos sobre o mármore da pia, pensando. Foi quando ouviu a aproximação de um carro.
Lima e Sandro desceram da viatura e, para supresa de Mário, Júlia surgiu do banco de trás.
- Já cumpri meu expediente e o Rivaldo assumiu a delegacia, chefe. Pedi pros investigadores me trazerem, pra eu observar e quem sabe ajudar nas buscas. Não vou cobrar hora extra, juro.
Mário ficou feliz por ter aquela companhia agradável a seu lado, mas não deixou a sua fisionomia transparecer esse sentimento.
- Vamos esperar os bombeiros. Todo mundo com rádio e lanterna. Pode ser que isso demore e daqui a uma hora vai escurecer. Trouxe sua arma, Júlia? Ótimo. Não, não espero encrenca, mas se você quer ser investigadora tem que entender que o seu revólver é como o seu pescoço: não dá pra andar por aí sem ele. Pra que lado fica o córrego, dona Maria?
Só então os policiais voltaram sua atenção para a mulher que permaneceu aquele tempo todo sentada num banco de madeira na varanda. Ela indicou com poucas palavras a trilha que levava ao córrego. Os quatro policiais saíram juntos. Depois de um trajeto de dez minutos, chegaram à margem.
- Vamos nos separar. Sandro e Lima sobem o córrego pela margem. Eu e Júlia vamos até aquele bosque ali, rio abaixo. Rádio ligado o tempo todo. Quem encontrar algo suspeito chama os outros.
Mário ficou pensando por que colocou Júlia a seu lado. Foi uma escolha aleatória como qualquer outra, tentava se convencer. Mas no fundo sabia que gostava de ter aquela moça inteligente e bonita por perto. Ficou um pouco acabrunhado por se flagrar tendo esses pensamentos, mas logo os afastou da cabeça e concentrou-se na busca que tinha pela frente.
Júlia ficou pensando a mesma coisa. Sentiu-se como uma colegial, feliz por ver que o menino mais popular da escola preferia sentar-se ao lado dela na sala de aula. Ruborizou um pouquinho com essa ideia e deixou escapar um sorriso silencioso. Sorte que Mário andava a passos largos à sua frente, senão teria entendido todos os pensamentos dela - perspicaz como era.
O bosque era fechado mas tinha pequenas trilhas onde ainda se enxergavam as pegadas de pequenos roedores e de crianças - os filhos de Mazinha certamente costumavam brincar por ali. Júlia e Mário percorreram toda a extenção da mata até o outro lado. Uma caminhada difícil que terminava no pé de um morro íngreme. Na clareira, os dois olharam para o oeste a tempo de ver o sol se escondendo atrás das montanhas longínquas. Uma delas, a Pedra do Baú, dava à cena uma beleza única. Ficaram alguns momentos contemplando a paisagem antes de falar qualquer coisa.
- Dificilmente os meninos iriam além daqui. O morro é muito inclinado pra uma escalada de duas crianças.
- Também acho chefe. E agora, o que a gente faz?
- Vamos voltar pro sítio.
O rádio fez o ruído tradicional de conexão. Ouviu-se a voz de Lima do outro lado.
- Nem sinal dos desaparecidos, Mário.
- Ok, Lima. Voltem pro sítio. Vamos pensar no que faremos.
Uma hora depois a noite já tinha se fechado sobre o vale, com sua umidade fria e seu manto escuro pontilhado de estrelas. Rivaldo falou pelo rádio que os bombeiros começariam as buscas na manhã seguinte porque os preparativos acabaram demorando muito e, quando terminaram tudo, já estava escuro.
Mário quis saber quem era o vizinho mais próximo, e resolveu conversar com Nicolau ainda naquela noite.
- Vocês estão dispensados por hoje, pessoal. Bom descanso.
- Se não se incomoda, gostaria de ir com o senhor, chefe. - Júlia disse isso e agradeceu por estar escuro, pois tinha certeza que sua face estava vermelha. - Sabe que estou de olho no cargo de investigadora e essas experiências são muito ricas.
Mário notou que Lima e Sandro trocaram um olhar significativo, mas nada falaram.
- Tudo bem, Júlia, se você quer. - Mário sabia das aspirações da escrivã, mas também sabia que naquele universo machista da polícia civil ela tinha poucas chances de alcançar seu objetivo. Ainda assim, resolveu não desmotivá-la.
Levou quase uma hora para percorrer os 20 quilômetros que separavam o sítio de Mazinha da casa de Nicolau. Estradas péssimas, escuridão, falta de sinalização. Mas finalmente encontraram o lugar.
Nicolau já estava na cama e veio atender de pijama. Explicou que acordava de madrugada muito antes do sol nascer pra recolher a produção de leite da região e levar até o laticínio. Disse que costumava dar carona na velha carroça para as crianças de Mazinha todos os dias. Levava-as à escola rural e, quando terminava o serviço, as deixava em casa na volta. Júlia pediu pra ver a carroça. Enquanto se afastava em direção ao local indicado pelo carroceiro, Mário continuava com as perguntas.
- O que sabe da família de dona Maria?
- Dona Maria? Ah, certo, a Mazinha. Aqui a gente chama ela de Mazinha. Nem lembrava mais que o nome dela era Maria. Sei muito não. Marido trabalhador, filhos bons, ela não sai de casa nunca.
- Brigas, desentendimentos?
- Olha, doutor, se tiveram, não foi coisa fora do normal não. Nunca soube de nada mais grave.
- E o tal Tibúrcio? Algum caso com outra mulher ou coisa assim?
- Ah, seo doutor, quem é santo hoje em dia? Mas nunca soube de nada disso não. As vezes que nos encontramos na venda ele sempre se levantava da mesa antes dos outros dizendo que a patroa tava esperando e precisava voltar pra casa… Enfim, um homem direito até onde eu sei.
Nesse ponto da conversa Júlia voltou e, com um discreto aceno de cabeça, fez Mário entender que não tinha nada demais nem na carroça, nem no galpão dos fundos da casa - que ela inspecionou minuciosamente.
A conversa de Nicolau também foi suficiente para eliminá-lo como suspeito de qualquer coisa. Mário se considerava um julgador de caráteres razoavelmente competente, e teve a certeza de que estava diante de um homem simples, sem malícia ou maldade. Deu-se por satisfeito por aquela noite.
Mário deixou Júlia na casa dela.
- Que sumiço mais estranho. - argumentou ela. - Já vi mulher fugir de marido violento levando os filhos junto. Mas isso…
- Até porque parece que a violência não fazia parte da rotina daquela família - ponderou Mário.
- Não há motivo para serem sequestrados, até onde a gente sabe. Mistério… Bem, obrigada por me deixar acompanhá-lo.
- Não tem de quê.
Os dois ficaram uma fração de segundo sem saber qual a despedida mais adequada, olhando-se nos olhos. Finalmente Mário estendeu a mão.
- Boa noite. Nos vemos amanhã na delegacia.
- Boa noite, chefe.
Mário entrou em casa com os sapatos nas mãos. Foi ao quarto dos filhos menores, de onde partia um leve ressonar. Depois abriu com cuidado a porta do quarto da filha mais velha. Dormia tranquilamente, com o fone de ouvido preso à cabeça e conectado a um walkman.
Apesar do cuidado que tomou ao se deitar, acabou acordando Suely.
- Você demorou, Mário - disse ela, ainda presa nas garras do sono.
- Volte a dormir, amor. Estou em casa.
Mário a beijou na testa e, antes que se virasse para colocar a arma sobre a mesinha de cabeceira, notou que ela estava novamente entregue a um profundo sono, daqueles que apenas os justos e os psicopatas são capazes de desfrutar.
Para alguém com essa visão das coisas, uma peça fora de lugar numa cena de crime é simplesmente impossível de ignorar. Essa mania que tanto o dominava já tinha se mostrado útil em mais de uma investigação. Por isso, mesmo sabendo que seria ridicularizado às escondidas pelos colegas, Mário resolveu dar uma última olhada no sítio de Mazinha antes de arquivar o caso. Mais especificamente, ele queria entrar na cozinha da casa mais uma vez.
A viagem foi um pouco dificultada pela péssima condição do trecho de terra da estrada. Um temporal havia caído sem piedade na noite anterior. O Capivari ficou sem energia por muitas horas. Um barraco deslizou na vila Santo Antônio; felizmente os moradores conseguiram sair antes e ninguém se feriu. Alguns pinheiros de várias décadas foram abaixo na estrada de Descansópolis, e o heliponto no Palácio do Governo ficou interditado depois que galhos de araucária quebrados atingiram o mastro da biruta e as lâmpadas de sinalização no solo.
Mesmo com a estrada quase intransitável, Mário persistiu até o fim. Foi recebido por Mazinha com um olhar abatido, enxugando as mãos no avental.
- Nada da sua família, dona Maria?
- Nada, nem sinal, seu Mário - respondeu, usando o avental para enxugar as lágrimas.
Mazinha convidou Mário para tomar um café. Ele aceitou prontamente. Sentou-se à mesa da cozinha enquanto buscava com os olhos o faqueiro da parede. Lá estava ele, ainda sem uma das facas. Pela ordem dos objetos, era possível deduzir que a faca desaparecida seria uma das maiores do faqueiro, do tipo usado para cortar carne, geralmente pontiaguda e com lâmina afiada.
- A faca não apareceu? - perguntou de repente.
_ Faca? Ah, aquela faca… apareceu não. Nossa, o senhor não esqueceu dela?
- O que poderia ter acontecido? Entrou alguém aqui pra roubar uma simples faca? O Tibúrcio teria levado quando saiu de casa há uma semana? As crianças teriam pegado pra brincar e escondido em algum ponto? Pode ter sido qualquer coisa, não é, dona Maria?
Mazinha não respondeu. Apenas olhou para o faqueiro desfalcado.
Mário se levantou da cadeira e caminhou até a pia, olhando para o faqueiro. Quando chegou perto do balcão de pedra olhou pela janela. A chuva tinha causado um belo estrago nos fundos do sítio. Alguns galhos de pereira se espalhavam pelo chão. Grandes poças de água e lama se formaram. O belo canteiro de flores estava arruinado. Pétalas espalhadas, hastes arrancadas, folhas caídas… e embaixo daquilo, um lamaçal revolvido pela borrasca. Mário se deteve olhando para aquela paisagem desoladora. De repente notou que embaixo do canteiro havia algo mais do que apenas flores. Algo saía da terra, como um pedaço de trapo. O detetive saiu pela porta dos fundos e foi até ali, sujando os sapatos na lama do quintal. Abaixou-se para ver melhor. O pedaço de pano parecia ser parte de uma peça de roupa. Mário escavou a lama com as próprias mãos e logo puxou para fora um pedaço de camiseta infantil. Estava imundo, mas era possível ver que a cor era a mesma da blusa que Mazinha tinha dito que o filho usava no dia do desaparecimento.
Mário começou a cavar mais, quando ouviu a voz de Mazinha atrás dele.
- O que o senhor achou aí?
Ele não respondeu. Continuou cavando, o barro grudado nas mãos, casaco, camisa. Cavou, cavou muito, até que recuou sobressaltado. Do meio do charco surgiram os cabelos enlameados e o rosto já meio apodrecido de um menino.
- Vai pra dentro, dona Maria. Vai pra dentro por favor.
- O que foi?
- Obedece. Não venha aqui não. Eu já vou lá falar com a senhora.
Mazinha não se moveu. Mário a viu tomar um ar soturno, uma expressão mórbida. Os braços desfaleceram ao longo do corpo e a cabeça se inclinou, rendida. Rapidamente Mário raciocinou sobre o que tinha descoberto e chegou à única conclusão possível. Mazinha tinha matado toda a família e enterrado no próprio quintal. Mas por quê fazer isso e depois chamar a polícia? E o desespero que sempre demonstrou? Era impossível fingir um sentimento daqueles. Não fazia sentido, mas era só o que podia ter acontecido.
- Vamos nos sentar na cozinha, dona Maria.
O apoio chamado pelo rádio veio rápido. Bombeiros, legistas, policiais militares. Uma equipe da prefeitura trouxe pás para escavar o local. Debaixo daquele canteiro de flores, encontraram os corpos de Tibúrcio, Maurício e Fernanda, ainda embrulhados em lençóis e com cortes profundos na altura do coração. Também encontraram uma faca de cozinha, do tipo usado para cortar carne. A faca combinava perfeitamente com o jogo do faqueiro suspenso na parede.
Durante todo aquele trabalho Mazinha parecia alienada. Perguntava quem iria consertar o seu quintal depois de tanta bagunça. Quando o cadáver do filho foi retirado, ela comentou:
- Ah, Maurício, olha que sujeira. Vai ter que tomar um banho de horas. Depois te dou umas varadas!
No fim da tarde Mário chamou um psiquiatra forense de São José dos Campos para ajudar no caso. Durante três dias ele conversou com Mazinha. Ela ainda achava que o marido e os filhos estavam sumidos. Depois, por alguns minutos,lembrava-se da retirada dos corpos do quintal e chorava em desespero, para logo em seguida perguntar onde eles estariam àquela altura. Em nenhum momento ela disse ter matado os três.
O perito resolveu usar a hipnose para tentar mais informações. Apenas durante o transe Mazinha se lembrou do que aconteceu. Narrou os fatos com uma entonação de voz totalmente diferente, como se fosse outra pessoa. A postura também mudou radicalmente. Abandonou o comportamento tímido e assumiu um semblante arrogante, irritadiço, antipático. Essa nova Mazinha, desconhecida de todos até então, contou ao psiquiatra o que houve.
Naquele dia, a mulher tinha arrumado a casa como sempre fazia. Preparou a refeição, serviu os filhos e o marido; foram todos dormir cedo como era costume. Durante a noite, Mazinha teve insônia. Ficou pensando na sua rotina dos últimos 15 anos. Sempre fazendo as mesmas coisas. Excetuando o nascimento dos filhos, tudo sempre seguiu o mesmo roteiro. Aquilo a desesperava secretamente. Uma vida sem sentido, sem objetivos maiores, sem perspectivas, servindo a um marido medíocre e criando filhos comuns. Como mudar, àquela altura da vida? Como fazer algo diferente? A angústia daquele vazio era maior do que Mazinha podia admitir conscientemente. Então sua mente tomou uma rota de fuga daquela realidade sufocante. Mazinha levantou-se da cama e foi até a cozinha. Pegou a faca de cortar carne no faqueiro da parede e voltou para o quarto. Ficou alguns minutos observando o marido que ressonava, um leve odor de cachaça marcando o quarto. Foi até ele, ergueu o braço e o atingiu no peito. Tibúrcio nem se mexeu, não soltou um gemido. Morreu dormindo. Depois Mazinha foi ao quarto do menino e o matou da mesma forma. Por último, atingiu o coração da filha com a faca. Depois sentou-se numa cadeira no quarto da menina e ficou olhando o vazio, no escuro. Não se sabe quanto tempo ficou assim, antes de voltar para o próprio quarto e arrastar, com toda a dificuldade do mundo, o corpo do marido para o quintal. Depois fez o mesmo com os das crianças. Foi até o galpão, pegou uma pá e abriu um buraco embaixo do canteiro de flores. Empurrou os três para dentro, embrulhados em roupas de cama ensanguentadas, jogou a faca dentro do buraco e cobriu tudo com terra. O dia já estava amanhecendo quando aquela tarefa macabra chegou ao fim.
- Mazinha tomou banho e voltou a dormir - explicou o psiquiatra a Mário e ao delegado Afanásio. - Depois seguiu as rotinas do dia sem se preocupar com nada. Naquela sexta-feira não haveria aula, era o início das férias de julho, e o carroceiro que costumava levar as crianças para a escola sabia disso. Não passou pelo sítio e, portanto, não deu pela falta dos pequenos. Só no fim do dia Mazinha saiu do surto psicótico que teve. Foi como um episódio de esquizofrenia aguda. Quando Mazinha voltou a si, não se lembrou da tragédia que tinha causado nem de coisa alguma que fizera desde a noite anterior. Um período de tempo simplesmente apagado de sua cabeça. Foi então que ela deu pela falta dos filhos e, mais tarde, do marido.
Mário ouviu o relato do psiquiatra com os olhos atentos e as mãos cruzadas. Mal se movia.
- Isso explica a sinceridade dela ao pedir socorro pra gente. O desespero real que sentia, por não saber o que tinha acontecido. O próprio fato de ter vindo procurar ajuda está explicado. Ela não se lembrava que tinha matado os três.
- Exatamente, senhor Russo - concordou o psiquiatra. - Se me permite dizer, o lugar dela não é a cadeia. É um manicômio, para receber tratamento adequado.
Mário olhou para a pequena sala de espera da delegacia, onde Mazinha permanecia olhando o teto, perdida. Teve pena.
- Vamos providenciar - disse o delegado Afanásio.
O crime bárbaro foi destaque nos jornais da cidade e também na região. Emissoras de TV e rádio subiram a serra para contar a triste história da mulher que, sem saber o que fazia, tinha destruído as três vidas mais importantes para ela. O delegado Afanásio foi entrevistado e contou, com requintes de orgulho, como ele próprio tinha resolvido o caso.
- Que belo filho da puta - comentou Júlia.
- Não esquente com besteiras - sugeriu Mário.
- Se você não tivesse dado atenção pra uma simples faca fora do lugar, a gente talvez nunca soubesse o que aconteceu. Afinal, não é fácil esclarecer um crime que não teve motivo.
- Nem criminoso, a bem da verdade, já que a autora do triplo homicídio é uma doente mental. Mas também tive sorte. Se a tempestade não tivesse revolvido aquele túmulo improvisado nos fundos da casa, eu não teria desconfiado que os três estavam enterrados ali.
- Diga o que disser, chefe, acho que sorte tem muito pouco a ver com o que você fez.
Mário ficou em silêncio assimilando o elogio enquanto olhava para a própria mesa. Depois de um momento, perguntou:
- Júlia, você sabe se a faxineira derrubou meu porta-retrato? Ele está com um pequeno trinco aqui no vidro.
Júlia virou-se rapidamente para o balcão, vermelha como pimenta. Não respondeu.
Nessa época a cidade importava alguns dos principais defeitos das grandes cidades: trânsito caótico, falta de vagas pra estacionar e fila para tudo: de farmácias a restaurantes; de bancas de revista a malharias. As casas de chocolate caseiro no bairro turístico de Capivari ficavam apinhadas de gente. Muitos turistas elegantes, usando luvas, mulheres com saias de lã e botas compridas, homens de sobrecasaca, jovens em jaquetas, gorros de lã, calças jeans… Um desfile interminável de sapatos de couro. As estreitas calçadas em torno do Baden Baden ficavam intransitáveis de tão cheias. As pessoas iam parar no meio da rua disputando espaço com os carros. As mesas dos bares ocupavam o pouco espaço que restava das calçadas, e assim todos se misturavam, transeuntes e clientes, numa balbúrdia hipnótica. Alguns jovens passeavam com garrafas de vodka nas mãos - provavelmente sem dinheiro para os drinks caros dos bares de Capivari, mas dispostos a se divertir e beber. Alguns jordanenses tentavam se encaixar naquele universo alienígena, tentando fazer-se passar por turistas. Mas apesar das roupas caras e do esforço por parecerem de fora, o jeito de andar, de falar e até de pensar denunciavam esse nativos desnaturados.
Nessa efervecência Campos do Jordão mergulhava sua alma até o pescoço. E tirava daqueles bolsos o sustento do ano inteiro. Em julho o comércio vendia mais do que em todos os outros meses do ano somados. Nem mesmo as lojas itinerantes, que traziam para a cidade estandes de carros importados, parques de diversões e casas noturnas, ofuscavam o ganho local. Tinha riqueza pra todo mundo, não havia por quê brigar. Para dizer a verdade, os comerciantes de ocasião que se instalavam apenas em julho no município, eram atrações a mais. Completavam a volta no círculo do dinheiro.
O inspetor Mário Russo nunca gostou daquela balbúrdia. Sempre preferiu a cidade vazia, com suas brumas matinais, seu frio embriagador, suas paisagens alpinas. Um cenário que compensava a aversão que tinha dos jordanenses. Costumava pensar que todo paraíso tinha seu purgatório, e o de Campos do Jordão era o povo que ocupava aquele trecho de montanha. Achava-os medíocres, estúpidos, pouco imaginativos, destituídos de um mínimo de ambição ou criatividade. Havia exceções, é claro, mas que só confirmavam a regra.
Por outro lado havia beleza naquela simplicidade ingênua. Mesmo os que se achavam muito sofisticados na verdade olhavam para os lados, verificando se alguém observava o quanto eram "descolados" e "diferentes" do restante da população. E nessa necessidade de aceitação, expunham o germe das terras altas em que nasceram. Era como os jordanenses que tentavam se misturar aos turistas em busca de um status que pouco ou nada significava, se a gente pensasse com calma sobre o assunto.
De qualquer forma, aquele espírito plácido, aquela propensão ao marasmo, aquela falta de idealismo e ambição, tinham um ponto positivo que perdoava qualquer defeito: aquela postura protegia a natureza exuberante do lugar, mais do que qualquer lei ambiental.
"Não vamos mudar nada! Já está lindo desse jeito". E quem poderia criticá-los por pensar assim? Quem poderia desmentí-los? Estavam cobertos de razão. E por isso, é correto dizer que Campos do Jordão só era o que era por causa do povo que nela vivia. Qualquer outro povo já teria destruído há muito tempo aquela riqueza natural e divina.
Mário fazia essas conjecturas quando chegou à delegacia. Nem notou o trajeto de casa até ali, tão absorto em pensamentos. Estacionou e foi direto para a entrada, onde Júlia já arrumava os boletins do último plantão.
Como estava bonita com aquele cabelo solto nos ombros, Mário pensou. Ela devia usá-lo assim mais vezes, em vez do constante rabo-de-cavalo que ostentava.
Júlia pareceu perceber que estava sendo observada e, inconscientemente, passou a mão pelos cabelos que lhe caíam sobre o rosto enquanto ajeitava os documentos sobre a mesa. Um leve rubor a deixou ainda mais bonita, e Mário fez um esforço para tirar os olhos dela. Pegou o jornal sobre o balcão e deu bom dia.
- O livro de ocorrências, Júlia?
- Na sua mesa, chefe.
Mário foi até a cozinha, pegou uma xícara de café e se dirigiu para a mesa no fundo da ampla sala. Olhou as manchetes insípidas do jornal local e abriu o livro de ocorrências:
- um furto a uma casa de aluguel para temporada.
- dois furtos de carteira - prejuízo de uns poucos reais e documentos.
- furto de bicicleta.
- perda de documentos.
- desinteligência entre marido e mulher.
- desaparecimento
No meio daquelas ocorrências monótonas e triviais, o desaparecimento se destacava naturalmente. Mário pediu mais detalhes para Júlia.
- Uma senhora esteve aqui e disse que o marido e dois filhos tinham sumido. Passei um rádio pro Lima - ele não estava aqui - e ele falou pra ela voltar outro dia se ninguém aparecesse mesmo. Fazia menos de 24 horas do sumiço. Eu fiquei com dó e disse pra ela tentar ajuda nos bombeiros. Parecia tão desesperada! Chorava sem parar.
Mário olhou para a anotação no livro e tamborilou com os dedos sobre o tampo da mesa, como costumava fazer quando pensava sobre algo. Enfiou a mão no bolso e tirou uma caixinha de pastilhas de menta. Jogou uma na boca e ofereceu a caixinha para Júlia, que recusou.
- Tudo bem. Obrigado. - disse ele. Resolveu ver o que aconteceria. Se a mulher voltasse, pensaria em como ajudá-la. Talvez a família já tivesse aparecido e ela nem avisasse. Isso era muito comum.
O dia transcorreu lento e sem novidades até às 3 da tarde, quando a mulher que havia notificado o triplo desaparecimento apareceu na delegacia. Mário não precisou de nenhuma informação para deduzir que era ela, e que os três continuavam sumidos. A expressão no rosto de Mazinha falava por si.
"Bom, parece que o caso é grave", pensou, levantando-se em direção ao balcão onde Júlia já começava a ouvir a mulher.
Meia hora depois Mário pedia ajuda ao capitão Borges, do corpo de bombeiros, para organizar uma busca pelo fundão do Zé da Rosa.
- Leve o bote por via das dúvidas, capitão. A mulher informou que há um córrego por ali.
Mário também pediu ajuda à polícia militar e designou o Lima e o Sandro pra acompanhar o trabalho. Ele próprio entrou na viatura com Mazinha e a levou até o sítio. Durante o caminho aproveitou para repetir algumas perguntas que já tinham sido feitas por Júlia na sexta-feira: "alguma desavença com o marido? Ele costumava sumir por tanto tempo? E os filhos, algum amiguinho ? poderiam estar escondidos na casa de alguém? Houve briga, já fugiram de casa alguma vez?
A resposta para todas as peguntas, mais uma vez, foi negativa.
Fazia tempo que o inspetor não usava a estrada do Zé da Rosa. Se ele bem se lembrava, esteve por ali pela última vez durante o Caso do Flaconete de Cocaína. Lembrava-se que a estrada era asfaltada e bem sinalizada, mas perigosa. Cheia de curvas fechadas. Margeada por uma pirambeira das maiores. Quando chegava ao fundo do vale o asfalto desaparecia, dando lugar a uma esburacada estrada de terra, pisoteada por gado leiteiro e cheia de sulcos das rodas de carroças. Mário passou pelo último ponto de ônibus; notou que ainda teve que rodar muito a baixa velocidade por um caminho em condições cada vez piores, até chegar à porteira que dava acesso ao sítio. Desceu do carro, abriu a porteira, voltou ao volante e entrou pelo pomar. Deixou a porteira aberta atrás de si, depois de perguntar gentilmente se havia alguma criação que pudesse escapar por ali.
- Não, a vaca e o cavalo estão presos, e as galinhas não têm lugar melhor pra ir não. - respondeu Mazinha. Mário achou graça naquela resposta matuta e sorriu.
O inspetor queria dar uma boa olhada na casa antes que sua equipe chegasse. Pensava melhor com silêncio e sem companhia. A dona da casa mostrou para ele a cozinha, a ampla sala de pé direito alto e poucos móveis, O curto corredor que levava aos dois quartos, o do casal e o dos filhos. No quarto das crianças, as mochilas de escola sobre as camas arrumadas. Alguns brinquedos numa caixa, gibis da Turma da Mônica, Tio Patinhas, Mickey Mouse. Um guarda-roupa velho com uma porta meio solta e um espelho trincado.
No quarto do casal, a cama ainda desarrumada. Uma pequena cômoda com uma escova de cabelos, um copo e um porta-retratos. O guarda-roupa era maior que o das crianças, mas estava quase vazio. Dentro dele, à esquerda as roupas do marido: umas camisas, calças velhas e um único paletó. Um saco preto guardava algumas blusas de lã mal dobradas. Do lado direito, duas blusas femininas penduradas, uns vestidos, umas saias, e duas gavetas semiabertas em que se adivinhava a presença de roupas íntimas.
Mário achou aquela inspeção suficiente e pediu para ver a cozinha. Viu a mesa e a cadeira onde Mazinha disse ter adormecido de sexta para sábado. Olhou a cristaleira sem vidraças, recoberta por um pouco de pó e com xícaras, copos e pratos de diferentes tamanhos em seu interior, dispostos numa desordem que, de tão desordenada, parecia esconder algum método secreto de arrumação. O detetive foi até a pia, onde a louça do café da manhã ainda esperava ser lavada, e olhou pela janela que dava para os fundos da casa. Um terreno bastante amplo com mais árvores frutíferas e um belo canteiro de flores diversas. Pendurado na parede ao lado da janela Mário viu um faqueiro. Tamborilou com os dedos sobre o mármore da pia, pensando. Foi quando ouviu a aproximação de um carro.
Lima e Sandro desceram da viatura e, para supresa de Mário, Júlia surgiu do banco de trás.
- Já cumpri meu expediente e o Rivaldo assumiu a delegacia, chefe. Pedi pros investigadores me trazerem, pra eu observar e quem sabe ajudar nas buscas. Não vou cobrar hora extra, juro.
Mário ficou feliz por ter aquela companhia agradável a seu lado, mas não deixou a sua fisionomia transparecer esse sentimento.
- Vamos esperar os bombeiros. Todo mundo com rádio e lanterna. Pode ser que isso demore e daqui a uma hora vai escurecer. Trouxe sua arma, Júlia? Ótimo. Não, não espero encrenca, mas se você quer ser investigadora tem que entender que o seu revólver é como o seu pescoço: não dá pra andar por aí sem ele. Pra que lado fica o córrego, dona Maria?
Só então os policiais voltaram sua atenção para a mulher que permaneceu aquele tempo todo sentada num banco de madeira na varanda. Ela indicou com poucas palavras a trilha que levava ao córrego. Os quatro policiais saíram juntos. Depois de um trajeto de dez minutos, chegaram à margem.
- Vamos nos separar. Sandro e Lima sobem o córrego pela margem. Eu e Júlia vamos até aquele bosque ali, rio abaixo. Rádio ligado o tempo todo. Quem encontrar algo suspeito chama os outros.
Mário ficou pensando por que colocou Júlia a seu lado. Foi uma escolha aleatória como qualquer outra, tentava se convencer. Mas no fundo sabia que gostava de ter aquela moça inteligente e bonita por perto. Ficou um pouco acabrunhado por se flagrar tendo esses pensamentos, mas logo os afastou da cabeça e concentrou-se na busca que tinha pela frente.
Júlia ficou pensando a mesma coisa. Sentiu-se como uma colegial, feliz por ver que o menino mais popular da escola preferia sentar-se ao lado dela na sala de aula. Ruborizou um pouquinho com essa ideia e deixou escapar um sorriso silencioso. Sorte que Mário andava a passos largos à sua frente, senão teria entendido todos os pensamentos dela - perspicaz como era.
O bosque era fechado mas tinha pequenas trilhas onde ainda se enxergavam as pegadas de pequenos roedores e de crianças - os filhos de Mazinha certamente costumavam brincar por ali. Júlia e Mário percorreram toda a extenção da mata até o outro lado. Uma caminhada difícil que terminava no pé de um morro íngreme. Na clareira, os dois olharam para o oeste a tempo de ver o sol se escondendo atrás das montanhas longínquas. Uma delas, a Pedra do Baú, dava à cena uma beleza única. Ficaram alguns momentos contemplando a paisagem antes de falar qualquer coisa.
- Dificilmente os meninos iriam além daqui. O morro é muito inclinado pra uma escalada de duas crianças.
- Também acho chefe. E agora, o que a gente faz?
- Vamos voltar pro sítio.
O rádio fez o ruído tradicional de conexão. Ouviu-se a voz de Lima do outro lado.
- Nem sinal dos desaparecidos, Mário.
- Ok, Lima. Voltem pro sítio. Vamos pensar no que faremos.
Uma hora depois a noite já tinha se fechado sobre o vale, com sua umidade fria e seu manto escuro pontilhado de estrelas. Rivaldo falou pelo rádio que os bombeiros começariam as buscas na manhã seguinte porque os preparativos acabaram demorando muito e, quando terminaram tudo, já estava escuro.
Mário quis saber quem era o vizinho mais próximo, e resolveu conversar com Nicolau ainda naquela noite.
- Vocês estão dispensados por hoje, pessoal. Bom descanso.
- Se não se incomoda, gostaria de ir com o senhor, chefe. - Júlia disse isso e agradeceu por estar escuro, pois tinha certeza que sua face estava vermelha. - Sabe que estou de olho no cargo de investigadora e essas experiências são muito ricas.
Mário notou que Lima e Sandro trocaram um olhar significativo, mas nada falaram.
- Tudo bem, Júlia, se você quer. - Mário sabia das aspirações da escrivã, mas também sabia que naquele universo machista da polícia civil ela tinha poucas chances de alcançar seu objetivo. Ainda assim, resolveu não desmotivá-la.
Levou quase uma hora para percorrer os 20 quilômetros que separavam o sítio de Mazinha da casa de Nicolau. Estradas péssimas, escuridão, falta de sinalização. Mas finalmente encontraram o lugar.
Nicolau já estava na cama e veio atender de pijama. Explicou que acordava de madrugada muito antes do sol nascer pra recolher a produção de leite da região e levar até o laticínio. Disse que costumava dar carona na velha carroça para as crianças de Mazinha todos os dias. Levava-as à escola rural e, quando terminava o serviço, as deixava em casa na volta. Júlia pediu pra ver a carroça. Enquanto se afastava em direção ao local indicado pelo carroceiro, Mário continuava com as perguntas.
- O que sabe da família de dona Maria?
- Dona Maria? Ah, certo, a Mazinha. Aqui a gente chama ela de Mazinha. Nem lembrava mais que o nome dela era Maria. Sei muito não. Marido trabalhador, filhos bons, ela não sai de casa nunca.
- Brigas, desentendimentos?
- Olha, doutor, se tiveram, não foi coisa fora do normal não. Nunca soube de nada mais grave.
- E o tal Tibúrcio? Algum caso com outra mulher ou coisa assim?
- Ah, seo doutor, quem é santo hoje em dia? Mas nunca soube de nada disso não. As vezes que nos encontramos na venda ele sempre se levantava da mesa antes dos outros dizendo que a patroa tava esperando e precisava voltar pra casa… Enfim, um homem direito até onde eu sei.
Nesse ponto da conversa Júlia voltou e, com um discreto aceno de cabeça, fez Mário entender que não tinha nada demais nem na carroça, nem no galpão dos fundos da casa - que ela inspecionou minuciosamente.
A conversa de Nicolau também foi suficiente para eliminá-lo como suspeito de qualquer coisa. Mário se considerava um julgador de caráteres razoavelmente competente, e teve a certeza de que estava diante de um homem simples, sem malícia ou maldade. Deu-se por satisfeito por aquela noite.
Mário deixou Júlia na casa dela.
- Que sumiço mais estranho. - argumentou ela. - Já vi mulher fugir de marido violento levando os filhos junto. Mas isso…
- Até porque parece que a violência não fazia parte da rotina daquela família - ponderou Mário.
- Não há motivo para serem sequestrados, até onde a gente sabe. Mistério… Bem, obrigada por me deixar acompanhá-lo.
- Não tem de quê.
Os dois ficaram uma fração de segundo sem saber qual a despedida mais adequada, olhando-se nos olhos. Finalmente Mário estendeu a mão.
- Boa noite. Nos vemos amanhã na delegacia.
- Boa noite, chefe.
Mário entrou em casa com os sapatos nas mãos. Foi ao quarto dos filhos menores, de onde partia um leve ressonar. Depois abriu com cuidado a porta do quarto da filha mais velha. Dormia tranquilamente, com o fone de ouvido preso à cabeça e conectado a um walkman.
Apesar do cuidado que tomou ao se deitar, acabou acordando Suely.
- Você demorou, Mário - disse ela, ainda presa nas garras do sono.
- Volte a dormir, amor. Estou em casa.
Mário a beijou na testa e, antes que se virasse para colocar a arma sobre a mesinha de cabeceira, notou que ela estava novamente entregue a um profundo sono, daqueles que apenas os justos e os psicopatas são capazes de desfrutar.
4
Na terça-feira o delegado estava de volta a Campos do Jordão. Ele fazia expediente em Santo Antonio do Pinhal toda segunda-feira desde que o delegado daquela cidade se aposentou, há 3 meses. A secretaria de segurança pública ainda não tinha arranjado um substituto. Por isso o doutor Afanásio tinha que ir para lá de vez em quando pra manter a delegacia funcionando.
O delegado chamou Mário a sua sala, fez um breve relato das rotinas que desembaraçou em Santo Antonio, e recostou-se na cadeira, pronto para ouvir o relatório do seu chefe de investigadores.
Mário contou sobre o desaparecimento de três pessoas da mesma família, e as medidas que tomou para tentar resolver o caso. O delegado apenas balançou a cabeça em anuência. Depois pediu que Mário o mantivesse informado.
Os investigadores estavam em outros casos naquela manhã. Os bombeiros já tinham seguido para o Zé da Rosa logo nas primeiras horas do dia. A delegacia estava tranquila, com um ou dois boletins registrados durante toda a manhã. Mário decidiu ir ao Zé da Rosa ver de perto o trabalho dos bombeiros. Avisou o delegado e saiu com a viatura.
Sentiu-se aliviado de deixar para trás o trânsito repleto de carros dos turistas no bairro de Abernéssia, centro comercial da cidade, onde fica a delegacia. À medida que se afastava dali num caminho cercado de vegetação, sentia-se mais leve, com a cabeça mais propícia ao raciocínio. Pôs-se a relembrar o que viu no dia anterior, método que usava para tentar localizar indícios que, numa primeira observação, poderiam passar despercebidos. Reviu mentalmente o pomar, a sala ampla da casa de Mazinha, os quartos, a cozinha. Quando relembrou aquele cômodo da casa, algo o incomodou: algo que estava pendurado ao lado da janela. Sim, o faqueiro. Era formado de um suporte que ficava suspenso por um prego e tinha hastes para cada uma das facas. E Mário se lembrou: uma das hastes estava vazia. Fez mais um esforço e rememorou a pia da cozinha: estava com a louça do dia ainda por lavar, mas até onde conseguia recordar, não havia dentro dela nenhuma faca que combinasse com o jogo suspenso na parede.
Perto do sítio o detetive viu um caminhão de bombeiros estacionado. Olhou para a direita e notou um grupo de bombeiros tomando a trilha que levava ao córrego. Mário avançou um pouco mais e parou a viatura perto da porteira do sítio. Abriu a porteira e fez o curto caminho até a casa à pé mesmo. Bateu na porta. Mazinha atendeu. Mário pediu para entrar novamente e dar mais uma olhada na casa. Foi direto à cozinha e olhou novamente para o faqueiro na parede. Não havia se enganado. Realmente faltava uma faca ali. Olhou na pia, dessa vez vazia. Virou-se para Mazinha, sem rodeios.
- A senhora sabe onde está a faca que faz parte deste conjunto aqui pendurado?
A dona da casa pareceu um pouco surpresa com a pergunta. Demorou um pouco a responder.
- Não me lembro não senhor. Faz um tempo que não está aí, pra dizer a verdade.
Mário não insistiu, mas guardou aquela informação com cuidado.
As buscas no sítio se estenderam por cinco dias. Equipes vasculharam o bosque, navegaram o trecho do córrego que comportava o bote de resgate dos bombeiros, chegaram até a sondar o fundo com um mergulhador. Nada foi encontrado. Nenhum sinal de Tibúrcio ou dos dois filhos do casal. Aquela história estava se dirigindo rapidamente para os arquivos de casos não esclarecidos.
- Não é normal um homem sumir levando os filhos - comentou com Júlia.
- O mais normal seria a mulher fazer isso - concordou a escrivã.
- Se fosse abandono de lar, o cara simplesmente sumiria sem levar as crianças. Não faz sentido.
- Mas o que poderia ser? Algum desafeto sumiu com os três? Você cavou fundo a vida do tal Tibúrcio, Mário, não encontrou nem briga de escola no passado dele. Que motivo alguém teria pra dar sumiço num agricultor pobre e simples? E mais, se alguém quisesse acabar com ele, por que levaria também as crianças?
Júlia tinha razão, é claro. O caso estava num beco sem saída.
Mas a ideia de entregar os pontos incomodava o chefe de investigadores. Sua mente escapou de sofrer de TOC por muito pouco. Na verdade Mário sempre foi obcecado por ordem e equilíbrio. Desde criança gostava de organizar as camisas por cor, numa sequência que ia do branco ao preto, passando por todos os matizes do espectro dentro do guarda-roupas. No armário do espelho no banheiro, os vidros de remédios eram alinhados por tamanho. Sua mesa na delegacia era a única que mantinha um aspecto de organização. O delegado chamou Mário a sua sala, fez um breve relato das rotinas que desembaraçou em Santo Antonio, e recostou-se na cadeira, pronto para ouvir o relatório do seu chefe de investigadores.
Mário contou sobre o desaparecimento de três pessoas da mesma família, e as medidas que tomou para tentar resolver o caso. O delegado apenas balançou a cabeça em anuência. Depois pediu que Mário o mantivesse informado.
Os investigadores estavam em outros casos naquela manhã. Os bombeiros já tinham seguido para o Zé da Rosa logo nas primeiras horas do dia. A delegacia estava tranquila, com um ou dois boletins registrados durante toda a manhã. Mário decidiu ir ao Zé da Rosa ver de perto o trabalho dos bombeiros. Avisou o delegado e saiu com a viatura.
Sentiu-se aliviado de deixar para trás o trânsito repleto de carros dos turistas no bairro de Abernéssia, centro comercial da cidade, onde fica a delegacia. À medida que se afastava dali num caminho cercado de vegetação, sentia-se mais leve, com a cabeça mais propícia ao raciocínio. Pôs-se a relembrar o que viu no dia anterior, método que usava para tentar localizar indícios que, numa primeira observação, poderiam passar despercebidos. Reviu mentalmente o pomar, a sala ampla da casa de Mazinha, os quartos, a cozinha. Quando relembrou aquele cômodo da casa, algo o incomodou: algo que estava pendurado ao lado da janela. Sim, o faqueiro. Era formado de um suporte que ficava suspenso por um prego e tinha hastes para cada uma das facas. E Mário se lembrou: uma das hastes estava vazia. Fez mais um esforço e rememorou a pia da cozinha: estava com a louça do dia ainda por lavar, mas até onde conseguia recordar, não havia dentro dela nenhuma faca que combinasse com o jogo suspenso na parede.
Perto do sítio o detetive viu um caminhão de bombeiros estacionado. Olhou para a direita e notou um grupo de bombeiros tomando a trilha que levava ao córrego. Mário avançou um pouco mais e parou a viatura perto da porteira do sítio. Abriu a porteira e fez o curto caminho até a casa à pé mesmo. Bateu na porta. Mazinha atendeu. Mário pediu para entrar novamente e dar mais uma olhada na casa. Foi direto à cozinha e olhou novamente para o faqueiro na parede. Não havia se enganado. Realmente faltava uma faca ali. Olhou na pia, dessa vez vazia. Virou-se para Mazinha, sem rodeios.
- A senhora sabe onde está a faca que faz parte deste conjunto aqui pendurado?
A dona da casa pareceu um pouco surpresa com a pergunta. Demorou um pouco a responder.
- Não me lembro não senhor. Faz um tempo que não está aí, pra dizer a verdade.
Mário não insistiu, mas guardou aquela informação com cuidado.
As buscas no sítio se estenderam por cinco dias. Equipes vasculharam o bosque, navegaram o trecho do córrego que comportava o bote de resgate dos bombeiros, chegaram até a sondar o fundo com um mergulhador. Nada foi encontrado. Nenhum sinal de Tibúrcio ou dos dois filhos do casal. Aquela história estava se dirigindo rapidamente para os arquivos de casos não esclarecidos.
- Não é normal um homem sumir levando os filhos - comentou com Júlia.
- O mais normal seria a mulher fazer isso - concordou a escrivã.
- Se fosse abandono de lar, o cara simplesmente sumiria sem levar as crianças. Não faz sentido.
- Mas o que poderia ser? Algum desafeto sumiu com os três? Você cavou fundo a vida do tal Tibúrcio, Mário, não encontrou nem briga de escola no passado dele. Que motivo alguém teria pra dar sumiço num agricultor pobre e simples? E mais, se alguém quisesse acabar com ele, por que levaria também as crianças?
Júlia tinha razão, é claro. O caso estava num beco sem saída.
Para alguém com essa visão das coisas, uma peça fora de lugar numa cena de crime é simplesmente impossível de ignorar. Essa mania que tanto o dominava já tinha se mostrado útil em mais de uma investigação. Por isso, mesmo sabendo que seria ridicularizado às escondidas pelos colegas, Mário resolveu dar uma última olhada no sítio de Mazinha antes de arquivar o caso. Mais especificamente, ele queria entrar na cozinha da casa mais uma vez.
A viagem foi um pouco dificultada pela péssima condição do trecho de terra da estrada. Um temporal havia caído sem piedade na noite anterior. O Capivari ficou sem energia por muitas horas. Um barraco deslizou na vila Santo Antônio; felizmente os moradores conseguiram sair antes e ninguém se feriu. Alguns pinheiros de várias décadas foram abaixo na estrada de Descansópolis, e o heliponto no Palácio do Governo ficou interditado depois que galhos de araucária quebrados atingiram o mastro da biruta e as lâmpadas de sinalização no solo.
Mesmo com a estrada quase intransitável, Mário persistiu até o fim. Foi recebido por Mazinha com um olhar abatido, enxugando as mãos no avental.
- Nada da sua família, dona Maria?
- Nada, nem sinal, seu Mário - respondeu, usando o avental para enxugar as lágrimas.
Mazinha convidou Mário para tomar um café. Ele aceitou prontamente. Sentou-se à mesa da cozinha enquanto buscava com os olhos o faqueiro da parede. Lá estava ele, ainda sem uma das facas. Pela ordem dos objetos, era possível deduzir que a faca desaparecida seria uma das maiores do faqueiro, do tipo usado para cortar carne, geralmente pontiaguda e com lâmina afiada.
- A faca não apareceu? - perguntou de repente.
_ Faca? Ah, aquela faca… apareceu não. Nossa, o senhor não esqueceu dela?
- O que poderia ter acontecido? Entrou alguém aqui pra roubar uma simples faca? O Tibúrcio teria levado quando saiu de casa há uma semana? As crianças teriam pegado pra brincar e escondido em algum ponto? Pode ter sido qualquer coisa, não é, dona Maria?
Mazinha não respondeu. Apenas olhou para o faqueiro desfalcado.
Mário se levantou da cadeira e caminhou até a pia, olhando para o faqueiro. Quando chegou perto do balcão de pedra olhou pela janela. A chuva tinha causado um belo estrago nos fundos do sítio. Alguns galhos de pereira se espalhavam pelo chão. Grandes poças de água e lama se formaram. O belo canteiro de flores estava arruinado. Pétalas espalhadas, hastes arrancadas, folhas caídas… e embaixo daquilo, um lamaçal revolvido pela borrasca. Mário se deteve olhando para aquela paisagem desoladora. De repente notou que embaixo do canteiro havia algo mais do que apenas flores. Algo saía da terra, como um pedaço de trapo. O detetive saiu pela porta dos fundos e foi até ali, sujando os sapatos na lama do quintal. Abaixou-se para ver melhor. O pedaço de pano parecia ser parte de uma peça de roupa. Mário escavou a lama com as próprias mãos e logo puxou para fora um pedaço de camiseta infantil. Estava imundo, mas era possível ver que a cor era a mesma da blusa que Mazinha tinha dito que o filho usava no dia do desaparecimento.
Mário começou a cavar mais, quando ouviu a voz de Mazinha atrás dele.
- O que o senhor achou aí?
Ele não respondeu. Continuou cavando, o barro grudado nas mãos, casaco, camisa. Cavou, cavou muito, até que recuou sobressaltado. Do meio do charco surgiram os cabelos enlameados e o rosto já meio apodrecido de um menino.
- Vai pra dentro, dona Maria. Vai pra dentro por favor.
- O que foi?
- Obedece. Não venha aqui não. Eu já vou lá falar com a senhora.
Mazinha não se moveu. Mário a viu tomar um ar soturno, uma expressão mórbida. Os braços desfaleceram ao longo do corpo e a cabeça se inclinou, rendida. Rapidamente Mário raciocinou sobre o que tinha descoberto e chegou à única conclusão possível. Mazinha tinha matado toda a família e enterrado no próprio quintal. Mas por quê fazer isso e depois chamar a polícia? E o desespero que sempre demonstrou? Era impossível fingir um sentimento daqueles. Não fazia sentido, mas era só o que podia ter acontecido.
- Vamos nos sentar na cozinha, dona Maria.
O apoio chamado pelo rádio veio rápido. Bombeiros, legistas, policiais militares. Uma equipe da prefeitura trouxe pás para escavar o local. Debaixo daquele canteiro de flores, encontraram os corpos de Tibúrcio, Maurício e Fernanda, ainda embrulhados em lençóis e com cortes profundos na altura do coração. Também encontraram uma faca de cozinha, do tipo usado para cortar carne. A faca combinava perfeitamente com o jogo do faqueiro suspenso na parede.
Durante todo aquele trabalho Mazinha parecia alienada. Perguntava quem iria consertar o seu quintal depois de tanta bagunça. Quando o cadáver do filho foi retirado, ela comentou:
- Ah, Maurício, olha que sujeira. Vai ter que tomar um banho de horas. Depois te dou umas varadas!
No fim da tarde Mário chamou um psiquiatra forense de São José dos Campos para ajudar no caso. Durante três dias ele conversou com Mazinha. Ela ainda achava que o marido e os filhos estavam sumidos. Depois, por alguns minutos,lembrava-se da retirada dos corpos do quintal e chorava em desespero, para logo em seguida perguntar onde eles estariam àquela altura. Em nenhum momento ela disse ter matado os três.
O perito resolveu usar a hipnose para tentar mais informações. Apenas durante o transe Mazinha se lembrou do que aconteceu. Narrou os fatos com uma entonação de voz totalmente diferente, como se fosse outra pessoa. A postura também mudou radicalmente. Abandonou o comportamento tímido e assumiu um semblante arrogante, irritadiço, antipático. Essa nova Mazinha, desconhecida de todos até então, contou ao psiquiatra o que houve.
Naquele dia, a mulher tinha arrumado a casa como sempre fazia. Preparou a refeição, serviu os filhos e o marido; foram todos dormir cedo como era costume. Durante a noite, Mazinha teve insônia. Ficou pensando na sua rotina dos últimos 15 anos. Sempre fazendo as mesmas coisas. Excetuando o nascimento dos filhos, tudo sempre seguiu o mesmo roteiro. Aquilo a desesperava secretamente. Uma vida sem sentido, sem objetivos maiores, sem perspectivas, servindo a um marido medíocre e criando filhos comuns. Como mudar, àquela altura da vida? Como fazer algo diferente? A angústia daquele vazio era maior do que Mazinha podia admitir conscientemente. Então sua mente tomou uma rota de fuga daquela realidade sufocante. Mazinha levantou-se da cama e foi até a cozinha. Pegou a faca de cortar carne no faqueiro da parede e voltou para o quarto. Ficou alguns minutos observando o marido que ressonava, um leve odor de cachaça marcando o quarto. Foi até ele, ergueu o braço e o atingiu no peito. Tibúrcio nem se mexeu, não soltou um gemido. Morreu dormindo. Depois Mazinha foi ao quarto do menino e o matou da mesma forma. Por último, atingiu o coração da filha com a faca. Depois sentou-se numa cadeira no quarto da menina e ficou olhando o vazio, no escuro. Não se sabe quanto tempo ficou assim, antes de voltar para o próprio quarto e arrastar, com toda a dificuldade do mundo, o corpo do marido para o quintal. Depois fez o mesmo com os das crianças. Foi até o galpão, pegou uma pá e abriu um buraco embaixo do canteiro de flores. Empurrou os três para dentro, embrulhados em roupas de cama ensanguentadas, jogou a faca dentro do buraco e cobriu tudo com terra. O dia já estava amanhecendo quando aquela tarefa macabra chegou ao fim.
- Mazinha tomou banho e voltou a dormir - explicou o psiquiatra a Mário e ao delegado Afanásio. - Depois seguiu as rotinas do dia sem se preocupar com nada. Naquela sexta-feira não haveria aula, era o início das férias de julho, e o carroceiro que costumava levar as crianças para a escola sabia disso. Não passou pelo sítio e, portanto, não deu pela falta dos pequenos. Só no fim do dia Mazinha saiu do surto psicótico que teve. Foi como um episódio de esquizofrenia aguda. Quando Mazinha voltou a si, não se lembrou da tragédia que tinha causado nem de coisa alguma que fizera desde a noite anterior. Um período de tempo simplesmente apagado de sua cabeça. Foi então que ela deu pela falta dos filhos e, mais tarde, do marido.
Mário ouviu o relato do psiquiatra com os olhos atentos e as mãos cruzadas. Mal se movia.
- Isso explica a sinceridade dela ao pedir socorro pra gente. O desespero real que sentia, por não saber o que tinha acontecido. O próprio fato de ter vindo procurar ajuda está explicado. Ela não se lembrava que tinha matado os três.
- Exatamente, senhor Russo - concordou o psiquiatra. - Se me permite dizer, o lugar dela não é a cadeia. É um manicômio, para receber tratamento adequado.
Mário olhou para a pequena sala de espera da delegacia, onde Mazinha permanecia olhando o teto, perdida. Teve pena.
- Vamos providenciar - disse o delegado Afanásio.
O crime bárbaro foi destaque nos jornais da cidade e também na região. Emissoras de TV e rádio subiram a serra para contar a triste história da mulher que, sem saber o que fazia, tinha destruído as três vidas mais importantes para ela. O delegado Afanásio foi entrevistado e contou, com requintes de orgulho, como ele próprio tinha resolvido o caso.
- Que belo filho da puta - comentou Júlia.
- Não esquente com besteiras - sugeriu Mário.
- Se você não tivesse dado atenção pra uma simples faca fora do lugar, a gente talvez nunca soubesse o que aconteceu. Afinal, não é fácil esclarecer um crime que não teve motivo.
- Nem criminoso, a bem da verdade, já que a autora do triplo homicídio é uma doente mental. Mas também tive sorte. Se a tempestade não tivesse revolvido aquele túmulo improvisado nos fundos da casa, eu não teria desconfiado que os três estavam enterrados ali.
- Diga o que disser, chefe, acho que sorte tem muito pouco a ver com o que você fez.
Mário ficou em silêncio assimilando o elogio enquanto olhava para a própria mesa. Depois de um momento, perguntou:
- Júlia, você sabe se a faxineira derrubou meu porta-retrato? Ele está com um pequeno trinco aqui no vidro.
Júlia virou-se rapidamente para o balcão, vermelha como pimenta. Não respondeu.
ANTES DO FIM
Seis meses depois da tragédia de Mazinha, Mário telefonou para o hospital psiquiátrico para onde foi encaminhada, em Sorocaba, interior de São Paulo. O diretor atendeu a ligação.
- Ela está recebendo o tratamento padrão, senhor Russo. Sessões de eletrochoques, confinamento com camisa de força em câmara almofadada e, quando fica calma a poder de barbitúricos, até faz pequenas caminhadas pelo nosso pátio. Todas as tardes, fica falando com os filhos e marido: façam isso, façam aquilo, está na hora da escola… Ainda não vi nenhum progresso, mas a experiência me diz que nada está perdido enquanto o paciente estiver respirando…
Mário ficou deprimido. Arrependeu-se de ter feito aquela ligação. Tirou uma pastilha de menta da caixinha que trazia no bolso e jogou na boca, para disfarçar o amargo da tristeza.
-o.0.o-
No sítio onde Tibúrcio, Mazinha, Maurício e Fernanda tinham vivido seus dias, a ruína começou a se espalhar. O mato cresceu, ervas daninhas tomaram conta do pomar que ficou com o chão recoberto de frutas podres não colhidas; a cerca se quebrou e parte do telhado afundou. As criações foram levadas por outros sitiantes antes que morressem de fome. Nicolau ficou com o cavalo Batoré, que agora usa para puxar sua carroça de leite.
Logo o terrível caso foi perdendo espaço na mídia, nas conversas de boteco e nas fofocas entre sitiantes. Passou a ser uma lembrança triste. Podemos dizer sem medo de errar que com o tempo, a tragédia vai se perder no esquecimento. Daqui a alguns anos, talvez a única prova de que tudo aquilo tenha acontecido sejam os documentos do caso, numa gaveta da delegacia de Abernéssia.
FIM
(ilustração de Marcos Correia)
(ilustração de Marcos Correia)
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