Casa nova I

                                 I

          Chegou voando qual foguete e invadiu a cozinha pela porta aberta. Só parou perto do balcão, onde deu uma boa olhada em redor. Era um belo tico-tico, tão belo quanto qualquer outro de sua espécie, porém com um brilho diferente no olhar, o brilho da obstinação. Parecia incumbido de tarefa urgente e importante. (…)
         Bichinho dos mais sem vergonha, cara-de-pau mesmo, sentiu-se totalmente à vontade dentro da casa. Ignorou categoricamente os donos, que estavam presentes. Voou sobre os armários da cozinha, seguiu para a sala, equilibrou-se sobre os quadros na parede. Longos minutos depois, notava-se o bico aberto e o pequenino peito arfante.  Parecia cansado da procura por Deus sabe o quê.
         Enquanto isso, os moradores, sinceramente preocupados com a ave, tentavam em vão indicar a ela o caminho da rua. Gentilmente, aproximavam-se e espantavam-na para a direçao certa. Mas o emplumado teimoso dava meia volta no ar e entrava cada vez mais, ao invés de sair. Sabido que a casa nem é tão grande assim, mas proporcionalmente deve parecer uma fortaleza ou um castelo para avezinha tão pequena.
         O homem só ameaçou perder a paciência quando o tico-tico resolveu descansar sobre seus livros na estante mais alta. Seus preciosos livros, ameaçados por um passarinho que, como quase todos os outros, tem vocação para a sujeira. Seus clássicos da literatura mundial, da poesia, do teatro, à mercê das imprevisíveis  necessidades fisiológicas desses voadores.
         A mulher não conteve o riso. Afinal o homem é defensor incansável dos passarinhos, “deixa eles à vontade, são criaturas de Deus”, gosta de dizer, e agora torna-se vítima de um deles. O pior é que o bichinho parecia ter um gosto literário refinadíssimo. Primeiro pousou sobre os clássicos russos. Acomodou-se sobre “Os irmãos Karamazovi”, deu dois pulinhos até “Crime e Castigo” e foi aninhar-se sobre o cocuruto de Tolstói, no box de “Guerra e Paz”.
Aí aconteceu. O tico-tico aliviou os intestinos sem nenhuma cerimônia. Nessa hora o dono da casa agradeceu aos céus por duas coisas: a ave ser tão pequena e, consequentemente, produzir tão pouca sujeira; e ter uma pontaria sofrível. A caixa com os quatro volumes de “Guerra e Paz” permaneceu intocada, enquanto o diarréico descarte do passarinho estatelou-se no chão da sala.
Sob os risos incessantes da mulher, o homem impacientou-se. Espantou o ptico-tico entre gritos e palavrões. A ave pareceu mais incomodada do que assustada com a audácia daquele sujeito, gritando com ela como se fosse o dono da casa. Limitou-se a afastar-se um pouco, alcançando os nacionais. Esticou as asas sobre o “Dom Casmurro”, mas pareceu indisposta para a eterna dúvida sobre a fidelidade de Capitu. Logo afastou-se dali, encontrando abrigo sobre a Guerra Farroupilha e a galhardia do Capitão Rodrigo. Mas, tampouco o ambiente de conflito e valentia d’ “O tempo e o Vento” sossegou a ave em sua busca frenética. Visitou Macunaíma, ficou intrigada com o Sargento de Milícias, compadeceu-se do “Triste Fim de Policarpo Quaresma”; sem pausa para descanso, enamorou-se de Bandeira e Pessoa, deixou-se arrastar pelas ondas da Isla Negra de Neruda, embarcou na viagem alucinante de Kerouac pela Route 66.
Enquanto o homem desesperado apresentava uma vassoura como possível puleiro para o tico-tico, a ave continuava sua travessia literária pela sala, sem mostras de desânimo. Acabou esbarrando na simpatia de Cátia Moraes e seus antidepressivos, conheceu as “Memórias da Segunda Guerra Mundial” de Winston Churchill e “A Casa da Água” de Antonio Olinto.
Farto de tantas letras, o passarinho deu uma guinada completa em suas aventuras. Voou para o fundo da estante onde descansam os livros de Direito da mulher. Aí foi ela quem desmanchou o sorriso e ficou preocupada. Vai que o bicho resolve ter outra diarreia… Juntou-se ao marido na tarefa de afugentar o visitante.
O tico-tico enroscou os pés no Código Penal Brasileiro, mas deve ter sentido cheiro de cadeia. Saiu logo dali. Aparentemente satisfeito com a exploração, o pequenino decidiu retirar-se por conta própria. O casal não teve mais notícias dele por toda a tarde.
No dia seguinte, o danado apareceu de novo, mas dessa vez acompanhado de uma passarinha de penas arrepiadas na cabeça. Os dois pousaram perto da porta da cozinha, conversaram longamente num passarinhês ininteligível para os ignorantes humanos, e depois deram alguns passos para dentro da casa.
Uma longa série de trinados se seguiu, o macho argumentando, a fêmea contra-argumentando, os humanos pasmados observando. Finalmente, depois de muita tergiversação, os passarinhos deram meia volta e saíram por onde entraram. O casal ficou com a impressão de que o macho queria fazer um ninho entre os livros da estante, mas a fêmea não aprovou a escolha. E no mundo animal é a fêmea quem dá a última palavra. Assim como entre os humanos.
Mas não se mudaram para muito longe, os dois emplumados. Hoje o ninho deles está muito bem construído entre os arbustos da cerca viva, na frente da casa que exploraram com tanta insistência. Quem não acredita nessa história, é só fazer uma visita e conferir.



MC, 29/1/9 – Inspirado em fato real.

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