Fronteira







     O caminho é poeirento e monótono. O motor do jipe parece reclamar a cada solavanco. Estrada de terra batida, repleta de buracos, margeada por árvores esturricadas e arbustos venenosos. O próprio ar parece estagnado, viciado, sujo. É uma sujeira que gruda na roupa e na pele como cola. O marrom barrento do pó misturado ao suor é a cor do garimpo - a verdadeira cor dos diamantes. 
     O oficial Gonzales nasceu do lado venezuelano da fronteira, em Santa Helena, mas cresceu em Pacaraima. Gosta do lugar por causa da altitude (mais de novecentos metros acima do nível do mar), o que garante uma temperatura média extremamente baixa em comparação com o restante do Estado de Roraima. Pena que no trabalho diário, ao longo daquele pedaço de fronteira, esse benefício fica sempre distante, inacessível. Nas estradas, entrelaçadas e sinuosas como um labirinto, o que impera é o calor. E a secura. E a sensação claustrofóbica provocada pela ausência da mais modesta brisa.
     O jipe rugiu feroz quando a roda dianteira atropelou uma pedra maior. A roda traseira girou apressada, buscando tração como uma cobra dando o bote, levantando uma nuvem de poeira. Não deve faltar muito agora, Gonzales pensa, enquanto tenta manter os olhos irritados pela terra suspensa no ar abertos o suficiente para se orientar. O oficial gosta de se imaginar um guarda de fronteira à moda antiga, um defensor da Pátria, um herói. Mas em dias como este, é difícil manter a ilusão. A garganta seca reclama algum consolo mais concreto. "Quando eu chegar na Bodega, resolvo isso", pensou, sacudindo o cantil vazio. 
     Num trecho de mais ou menos dois quilômetros, a rala vegetação simplesmente se retira do cenário, deixando veículo e motorista expostos ao rigor do sol escaldante. Lá no fim da reta nua, fica o pequeno comércio. Um barraco de madeira podre com uma cobertura na frente fazendo as vezes de varanda. Na parede um cartaz da Coca-Cola. Uma mesinha, umas cadeiras. Do lado de dentro, um balcão igualmente podre, uma estufa com ovos coloridos da última Festa do Divino. Uma estante repleta de garrafas de aguardente, uma delas com uma cobra morta dentro. A mais forte, garante o dono do lugar.
     O dono da Bodega é um português que errou o caminho para São Paulo e acabou ficando por ali. Começou vendendo alguns pães de receita própria, mas logo viu que o que movimentaria seu comércio seria uma variedade de bebidas alcoólicas que atendesse aos gostos da clientela, basicamente formada por garimpeiros atrás de fortuna. Os pães ficaram esquecidos num velho caderno de receitas. De lá não saíram mais desde então. 
     Antes mesmo de parar o jipe Gonzales percebeu que não teria muito tempo para encher o cantil. No descampado de terra seca que cerca o estabelecimento, notou um corpo estendido. A cara virada para o chão, os braços ao longo do corpo, uma das pernas curvada num ângulo reto. Embaixo do corpo, a poeira tornou-se enegrecida pela mistura com o sangue derramado. A poucos passos do cadáver, uma caminhonete Land Rover de luxo, que em nada se encaixa com o ambiente miserável em que se vê inserida. 
     Gonzales parou o jipe. Pegou a arma que tinha colocado entre as pernas - um velho costume da época em que foi guarda noturno em Bela Vista e sentia receio de ser atacado a qualquer curva do caminho. Abriu a porta, enfiou a arma no coldre preso ao cinto e deixou o prendedor de couro desabotoado. Foi caminhando lentamente na direção do corpo, ouvindo os próprios passos sobre a terra e o cascalho. Notou pela primeira vez o pequeno grupo encostado na caminhonete, algumas garrafas de cerveja sobre a tampa do motor. Pareciam descontraídos, conversando, até sorrindo.
     O oficial olhou com mais cuidado para a vítima. Logo notou que, apesar das roupas masculinizadas, tratava-se de uma mulher. Perguntou quem era ela, mas ninguém ali soube - ou quis - informar. 
Abaixou-se, verificou os bolsos e encontrou uma identidade. "Meu Deus", pensou, "É a Juanita". Finalmente alguém resolveu promover o encontro dela com o próprio destino. 
     A mulher tinha um corte feio na testa, por onde saía sangue e massa encefálica. O rosto pardo, desfigurado pelos ferimentos, apresentava manchas amarelo-avermelhadas da terra sobre a qual estava prostrado. A perna virada tinha uma fratura exposta. O braço esquerdo também estava quebrado.
     Os risos dos homens próximos irritou Gonzales. Que tipo de insensibilidade levava a um comportamento grotesco como aquele? O agente de fronteira se aproximou do trio. Eles pararam de rir mas mantiveram as expressões burlescas e zombeteiras nas faces suarentas. Perguntados, não mostraram muito interesse em dar detalhes sobre o que tinha acontecido. Eles estavam vindo para a Bodega para comprar alguns engradados de aguardente, para um churrasco que haveria na fazenda do chefe, do lado venezuelano da fronteira. A mulher "surgiu do nada", quase que se atirando na frente da caminhonete. O motorista não teve como desviar, fatalidade, tragédia. Os risinhos cálidos nos lábios desmentiam aquele falso protesto de comiseração pelo ocorrido. 
     Gonzales olhou de novo para o corpo. Notou marcas nos pulsos, sanguinolentas. Aquela mulher tinha sido amarrada. O policial pediu para dar uma olhada na caminhonete. Claro que podia, fique à vontade. Olhou primeiro para a frente do veículo. O amassado na lataria abaixo do farol indicava o local exato do impacto contra o frágil corpo da vítima. Mas Gonzales não se contentou com essa vista superficial. Deu dois pessos até a lateral do veículo - os homens se afastaram a contragosto. Gonzales olhou para dentro do carro. Notou umas cordas no banco traseiro, tingidas de vermelho em alguns pontos. Tinha certeza que aquele era o sangue dos pulsos de Juanita.  Com uma serenidade que lembrava as nuvens se juntando antes de uma tempestade, Gonzales informou que todos deveriam acompanhar-lo até a delegacia da cidade, a dez quilômetros dali. Protestos. Tinham que levar a bebida para o chefe. Afinal, havia sido um acidente. Não é mesmo, Joaquim? O português tinha saído do comércio para ver de perto o que acontecia. Questionado, engoliu em seco, fez uma expressão de medo e apenas confirmou, com um movimento brusco de cabeça que suscitou muitas dúvidas em Gonzales sobre a sinceridade daquele depoimento mudo. Gonzales não arredou pé da decisão de ouvir os três jovens formalmente na delegacia. Houve reclamações e xingamentos. Quando um dos três avançou em direção ao policial com uma atitude intimidadora, Gonzales limitou-se a encarar o atrevido e levar a mão à pistola nove milímetros no coldre desabotoado. Não disse nada, nem precisava: o outro parou a meio do caminho e olhou para os lados, como quem verificava se os companheiros lhe dariam cobertura naquela parada. Viu-se sozinho, porém, observado pelos colegas com expressões irritadas, imóveis. Mas fomos nós que chamamos o senhor aqui, por que faríamos isso se tivéssemos culpa, não era melhor termos fugido, deixa a gente seguir nosso caminho. Nada feito. O camburão do IML chegaria mais tarde. Que ninguém mexa no corpo. Seu Joaquim garanta que o lugar seja preservado até a chegada da perita. Enquanto isso ele voltaria para o distrito com os três. Entraram relutantemente no corró gradeado na parte traseira do  jipe. Pegou a corda sanguinolenta no veículo dos suspeitos, tomando cuidado para só tocá-la com o saco de provas. Vedou o saco e jogou no porta-luvas. Gonzales se afastou dali depois de cercar o corpo com uma fita de isolamento presa a frágeis gravetos mal enterrados na poeira. Olhou pelo retrovisor e não pode deixar de sentir pena daquela que tinha sido uma pessoa valente, e agora se resumia a um monte de carne sem vida espremida no chão. 
     A atmosfera permaneceu sufocante durante todo o caminho de volta à delegacia. O sol parecia dourar a paisagem com seus raios amarelos e quentes. 
     Assim que chegou ao distrito Gonzales trancafiou os suspeitos numa cela e foi se lavar na pia do banheiro. A poeira daquela região esquecida por Deus parecia grudar até em seus pensamentos. Dia após dia sua rotina era retirar o pó da estrada, só para que ele voltasse a impregnar seu corpo no dia seguinte. Tinha sua dose de ironia que um lugar que representava a esperança para tantos garimpeiros só conseguisse inspirar desânimo para o policial. Por que não ir embora? Mudar de vida, quem sabe até de profissão? O mundo é grande. As oportunidades são muitas. Já recebeu convites de parentes que se disseram bem instalados em São Paulo; também do outro lado da fronteira recebeu propostas de trabalho nos garimpos. Sempre haveria o que fazer. Por que não mudar radicalmente de vida?
     Mas não mudou, pelo menos não até ali. Continuou lidando com o mesmo lixo de sempre, lixo como o que acabou de engaiolar no xadrez da delegacia. Logo o chefe deles apareceria pedindo que fossem soltos. E provavelmente o delegado-chefe acataria o pedido, depois de devidamente persuadido com algumas notas novinhas.
     Tudo parece sem sentido na fronteira norte do Brasil. E quem se importa? 
     Já era noite quando a porta se abriu. Gonzales esperava o delegado ou o chefe dos baderneiros… mas quem entrou foi Riquelme, um lavrador venezuelano radicado em Pacaraima. "Fecharam a fronteira, Gonzales". Fecharam? Como? O lavrador não conseguia se explicar, vítima da própria excitação. Gonzales ofereceu um copo dágua, pediu calma, dispôs-se a entender o que estava acontecendo. 
    Há mais de seis meses o movimento de imigrantes venezuelanos tinha aumentado demais. Atravessavam a fronteira amontoados em velhos ônibus fretados, abarrotados de sacos e malas na parte de cima, presos por cordas; em carros caindo aos pedaços; e principalmente a pé. Fugiam da fome e da miséria absolutas. Reuniam-se na praça ou na rodoviária de Santa Helena, e seguiam em bandos para Pacaraima, no lado Brasileiro. Do lado de cá, seguiam até Boa Vista e amontoavam-se na praça, sem condições de higiene, dormindo em redes ou esteiras jogadas no chão. Começaram a ocorrer alguns conflitos. Os imigrantes foram acusados de pequenos furtos, brigas, confusões. Alguns acharam melhor voltar para a Venezuela, mas outros, sem essa opção, permaneceram. E os números do êxodo continuaram crescendo, num fluxo que parecia interminável. Até agora. 
     Gonzales buscou informações mais concretas. Descobriu que o fechamento era uma atitude unilateral do Governo venezuelano, protestando contra a ajuda humanitária enviada pelo Brasil. "Não somos mendigos", disse o presidente venezuelano, embora o estado das pessoas que atravessavam para o lado brasileiro desse a impressão do contrário. As forças venezuelanas instaladas na fronteira receberam ordens de impedir a saída da população. O policial não entendeu nada. Fechar a fronteira para não receber ajuda? Parecia discurso de maluco. Cansou de tentar entender e resolveu ir ver com os próprios olhos. 
     No marco de fronteira viu veículos militares e tropas do lado venezuelano. Um grupo que se aproximava recebeu ordens para se afastar da travessia, sob a mira dos fuzis ameaçadores. Do lado brasileiro, uma multidão observava o que se passava. 
     Nos dias seguintes a situação se agravou. Os soldados venezuelanos dispararam contra compatriotas que tentavam atravessar a fronteira à força. Mas isso, longe de desestimular, pareceu aumentar ainda mais o desespero dos retirantes. Sete pessoas morreram tentando fugir da Venezuela. Um político que se dizia presidente, aproveitava o caos social para criticar ainda mais o regime venezuelano. Discursou, visitou representantes de governo de outros países sulamericanos, preparando-se para assumir o poder tão logo o ditador fosse deposto - o que chegou a ser cogitado com muita seriedade. Mas os dias se passaram e pouca coisa mudou na prática. 
     Nesse meio tempo, Gonzales decidiu abandonar a carreira e tentar a sorte com os parentes em São Paulo. A gota dágua nada teve a ver com a comoção em torno da crise venezuelana, ou o drama dos refugiados no Brasil. O real motivo foi Juanita. Como ele suspeitava, o chefe dos assassinos logo conseguiu a liberação dos três por uma fiança insignificante. O inquérito foi parar numa gaveta e depois arquivado por "falta de provas", apesar da corda que Gonzales teve o cuidado de guardar, impregnada do sangue de Juanita. De nada adiantou a investigação que Gonzales fez praticamente sozinho, descobrindo que Juanita era uma ferrenha defensora dos direitos dos garimpeiros, explorados por proprietários de terras como o chefe dos três suspeitos. Muitas ameaças tinham sido feitas, mas nenhuma tinha conseguido calar a boca da mulher; foi preciso usar algo mais veemente - e violento. "Todo mundo fala umas besteiras de cabeça quente, Gonzales. Ameaça não é prova", disse o delegado.
     Gonzales concluiu que não tinha mais estômago para aquilo tudo. Pediu demissão, acertou as contas, despediu-se dos conhecidos, saiu da cidade e se instalou numa pensão, em Amajari.
     Tomou o cuidado de se registrar com nome falso. 
     No dia em que o presidente venezuelano Nicolás Maduro anunciou a reabertura da fronteira, 15 de abril, Gonzales estava voltando anônimo para Pacaraima. Ninguém mais imaginava que ele ainda estivesse em Roraima àquela altura. Fez a viagem entre Amajari e Pacaraima sem pressa, a arma carregada no meio das pernas, como costumava deixar desde os tempos de guarda noturno. Na memória, os endereços dos homens que ele sabia que tinham matado Juanita. Ninguém se importava, a não ser ele. E São Paulo podia esperar. 

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