Exceção

     Roberto só foi parar naquele grupo de teatro por causa de Isolda. Bela, cabelos negros, pele muito branca, nome de heroína clássica, lábios carnudos e olhos grandes e brilhantes. Conheceram-se na faculdade, no curso de literatura. Roberto quebrou a timidez, convidou a moça para uma  cerveja, ela topou, falaram sobre arte, cinema, livros, e a conversa resvalou para o teatro. Participo de uma companhia alternativa, tem a sede lá no Joaquim Egídio perto da vila universitária, disse ela.
     - Gostaria de conhecer? 
     - Claro, respondeu Roberto. 
     A sede da Companhia era um casarão de madeira mais comprido do que alto, com um mezanino que lembrava um loft ligado ao térreo por uma escada rústica de madeira, de poucos degraus. O mezanino servia de palco para as apresentações experimentais do grupo. Eram poucos atores, dedicados principalmente a trabalhos de autoria própria voltados para o público infantil. No dia da visita, os artistas apresentavam um show de fantoches para crianças de um orfanato. Tudo de graça, Isolda explicou com um certo orgulho no olhar. 
     Roberto notou que num dos cantos do prédio havia sacos de dormir e colchões estendidos, lençóis, cobertores. Deduziu que alguns dos atores dormiam ali mesmo. A iluminação era improvisada e ineficiente, enchendo de sombras o térreo. Mas uma claraboia garantia toda iluminação necessária sobre o mezanino, pelo menos durante o dia, como era o caso naquela apresentação de fantoches. O ambiente tinha tudo para ser lúgubre com aqueles raios de sol cortando as trevas como facas... mas o riso das crianças e as vozes esganiçadas dos atores quebravam essa impressão, dando ao lugar um clima festivo.
     As visitas de Roberto começaram a ficar mais frequentes, e deixaram de depender da presença de Isolda. Depois de alguns dias, ele resolveu aceitar o convite para participar de algumas montagens da companhia. A maior parte, trabalhos voluntários sem remuneração alguma, feitos por amor à arte - ou porque nenhum dos integrantes do grupo se imaginava fazendo outra coisa. 
     Os dias se passaram, as semanas se alternaram, foi-se o verão, o outono chegou.
     A vida do país passava por um período atribulado. Crise econômica agravada por uma crise institucional profunda. Enquanto o grupo de teatro seguia com suas atividades artítiscas, as eleições transcorreram entre uma enxurrada da fake news divulgadas pelas redes socias, uma polarização ideológica que se mostrava com garras de intolerância, ofensas, confrontos, manifestações nem sempre pacíficas. Todo esse clima carregado descambou para uma tentativa de assassinato contra o principal concorrente à presidência. O atentado foi o combustível que faltava para elevar o ex-comerciante à condição de Presidente da República. 
     Mas a definição das urnas, longe de apaziguar os ânimos, foi o estopim para uma nova onda de conflitos. A nação se dividiu entre derrotados e vencedores, e nenhum dos dois lados demonstrava qualquer interesse em dialogar com o oposto. Logo nos primeiros dias, o governo se provou incapaz de unificar o país. Erros crassos em áreas estratégicas como educação e defesa deram ainda mais lenha para a fogueira das diferenças. Antes de completar um ano de mandato, o presidente já não dispunha de qualquer resquício de governabilidade. As coisas degringolaram rapidamente, ante os olhos atônitos de Roberto e seus novos amigos atores. 
     Foi Isolda quem propôs uma mudança na atuação do grupo. Uma pegada mais política, engajada, crítica ao momento de desgoverno que o país vivia. Ela mesma escreveu textos curtos para apresentações em praças e ruas, fora do ambiente fechado da sede da companhia. Pequenas esquetes que pudessem ser montadas e apresentadas antes de qualquer possibilidade de repressão. 
     E havia mesmo motivo para se preocupar com a repressão. Começou discreta, tímida, quase envergonhada. Depois, a censura foi ganhando força em atos totalitários do Poder Executivo, e até de onde menos se esperava - da Justiça, que se mostrou conivente com os abusos do governo. Apreensões ilegais de computadores e documentos surpreenderam os cidadãos, qualquer opinião contrária ao Estado era sufocada com rapidez e, em alguns casos, com violência.
     Opositores do governo começaram a desaparecer.
     Foi nesse contexto que o grupo de Isolda e outros como ele começaram a organizar passeatas e manifestações. A resposta foi o exército e a polícia na rua, reprimindo os atos públicos com jatos de água, cacetetes, balas de borracha e, numa escalada triste de violência, munição real. O jeito foi mudar a estratégia e partir para as pequenas esquetes, representadas como rápidos atos rebeldes. Duravam menos de cinco minutos, bradavam contra a "ditadura legalizada" que se impunha, e acabavam antes da polícia chegar com suas armas e algemas. Os atores passaram a ter um trabalho dobrado: estudavam o texto teatral e também os mapas dos locais escolhidos para as apresentações, demarcando rotas de fuga, esconderijos e meios de transporte disponíveis para uma saída rápida. 
     Aconteceu um cliché dos regimes totalitários, que se repetiu em todos os países vítimas de ditaduras, em todos os tempos: os próprios apoiadores do governo acabaram confundidos com os rebeldes e caçados com igual rigor. Surpresos, revoltados com o que chamavam de injustiça contra seguidores leais, tentaram argumentar "não tenho culpa da opinião política do meu primo", "penso diferente do meu irmão subversivo"… mas de nada adiantou. Passaram pelas mesmas violências que seus parentes e amigos revolucionários. O radicalismo não poupou ninguém, como é de sua natureza fazer. A preferência sexual, bandeira de campanha do eleito, também virou justificativa para arbitrariedades. No grupo de Isolda havia um casal de atores gays que foi preso, interrogado e torturado - por serem gays. Depois daquela agressão, resolveram fugir para o interior, longe do terror de que foram vítimas. Mas mesmo lá foram alcançados e mortos pela intolerância oficial, que parecia dar aval para crimes de qualquer tipo, desde que praticados contra os grupos certos. Da mesma forma, negros e mestiços viram um recrudescimento do racismo, que se tornou política de Estado. Decretos governamentais proibiram a participação de negros em concursos públicos. Mestiços eram obrigados a se apresentar em delegacias de polícia para comunicar viagens que pretendessem fazer. Eram impedidos de frequentar alguns bairros das cidades e revistados sistematicamente se fossem vistos nas ruas depois de determinado horário - um toque de recolher segregacionista. 
     Isolda e Roberto estavam na rua uma noite, e notaram que o ambiente estava especialmente tenso. Não havia soldados à vista, mas pelas esquinas aglomeravam-se jovens aparentando não passar de adolescentes, quase crianças, armados com revólveres e fuzis. Brandiam as armas como se fossem meninos brincando de cowboy e bandido. Traziam em braçadeiras ou estampados nas blusas azuis, o símbolo do governo, uma cruz negra em campo amarelo. O brasão servia como uma licença para "patrulhar" a cidade. Espancamentos começaram a ocorrer com cada vez mais frequência. Essas milícias jovens e sem comando logo se tornaram mais numerosas do que as forças policiais formais. A anarquia se alastrou. As agressões já não seguiam nenhum padrão ideológico. Todos que não usassem o emblema do governo podiam se tornar alvos. 
     Não demorou para a sede da companhia de teatro ser invadida por uma dessas milícias. Os adolescentes armados quebraram tudo que puderam, espancaram quem encontraram. Jonhy, um dos atores mais antigos, tentou impedir a depredação. Foi rendido pelos vândalos com cruz no peito, levado para fora do prédio a chutes e socos, jogado na calçada e executado a sangue frio com um tiro de revólver. A polícia apareceu depois, para fazer o registro da ocorrência. Os assassinos permaneciam no local, acompanhando arrogantemente o trabalho da perícia; uma encenação destinada às gavetas do arquivo morto da Delegacia. 
     Uma semana depois da tragédia na Companhia, Roberto notou que Isolda estava mais taciturna, silenciosa, sombria. Numa visita que fez à sede, notou que ela se apressava em esconder algo numa gaveta do térreo. Roberto esperou ela se afastar e foi ver do que se tratava. Encontrou uma pistola e dois pentes de balas. Confrontou a moça, quis saber para quê aquilo. 
     - Se encontram isso aqui, é condenação imediata, disse Roberto.
     - É só para me defender se algum ladrão invadir a sede, respondeu Isolda, sem convencer o amigo. 
     Ele decidiu passar a noite na Companhia. Isolda não tentou impedir. Acabaram se amando num dos velhos colchões espalhados pelo térreo. O ardor era próprio de quem não sabia quando teriam outra chance de matar o desejo que se acumulava há muito tempo.
     Quando Roberto acordou estava sozinho. Teve um mal pressentimento. Chamou por Isolda, sem resposta. Foi até o local onde ela tinha guardado a arma. A gaveta estava vazia. Saiu pelas ruas procurando a amante, sem sucesso. Perguntou dela nos lugares que costumavam frequentar, para os amigos em comum… ninguém sabia dela. 
     Mais tarde, naquele mesmo dia, o Presidente foi baleado durante um evento público em homenagem ao exército. A terrorista, presa imediatamente, era uma moça morena, de pele clara, usando um blusão azul com a estrela negra para não despertar suspeitas. Identificada como Isolda Ramos, estudante, atriz amadora, foi levada para um dos departamentos de polícia no centro e duramente "interrogada". A versão oficial diz que ela tentou fugir apossando-se da arma de um dos policiais, e acabou morta numa "troca de tiros" pelos interrogadores. Ninguém se preocupou em explicar como ela teve forças para roubar a arma de um polícial depois de horas de interrogatório e tortura. 
     A quilômetros dali, no hospital do exército, o presidente expirou depois de uma longa agonia. O tiro tinha acertado o pulmão e seccionado uma artéria. Não houve como salvar o líder da nação. Essa, pelo menos, foi a versão oficial amplamente divulgada. Ninguém ousou desconfiar do complô armado para se aproveitar do atentado e assassinar o presidente com uma simples negligência médica. Pequenos atrasos no atendimento, doses erradas de medicamentos, suturas não feitas, sangramentos não contidos. 
     Com a morte do presidente, o caos se espalhou de vez. Grupos de militares que pretendiam tomar o poder não conseguiram conter as mílicias que se sentiram na obrigação de vingar a morte do "líder". Incêndios, explosões, ataques nas ruas, confrontos entre milicianos e policiais, se espalharam como fogo num paiol, por toda parte, a todo momento. 
     Roberto viu que era hora de partir. Com uma mochila nas costas e poucos pertences, saiu da cidade nos primeiros raios da alvorada. No bolso, uma adaptação de Tristão e Isolda, que a jovem amante tinha escrito há muito tempo, quando ainda havia liberdade no país. Texto que nunca chegou a ser encenado pela Companhia, destroçada pela repressão antes de ter tempo de montar a peça. Talvez algum dia, pensou ele, em algum lugar, haja espaço para a arte, e para esse texto ganhar vida. Um tempo e lugar em que o direito à opinião volte a existir, e as diferenças sejam toleradas e respeitadas. Um tempo de liberdade. 
     Com essa esperança Roberto seguiu seu caminho, sem olhar para trás. 

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