Manfred
![]() |
| Rio do Sul - SC |
É incrível como lugares banais podem se tornar espaços de aprendizado. Mais do que nos livros, é na rua que se aprende. Ou, no caso desta história, no supermercado.
Nem todos os supermercados têm espaço para acomodar as pessoas com um mínimo de conforto. Este, onde ocorreu o caso, dispunha de três míseras cadeiras, daquelas de escritórios, presas umas nas outras.
Ocupei uma delas enquanto minha esposa Sofia fazia o restante das compras - foi ela que disse que preferia terminar sozinha. Confesso que não discuti.
Logo um casal de idosos se aproximou das cadeiras. A mulher conversou brevemente com o marido e pareceu tomar a mesma decisão que Sofia: livrou-se dele ordenando-lhe que ficasse por ali.
Eu me levantei e ofereci a cadeira para o velho se acomodar. Notei nos poucos passos que ele deu, que tinha dificuldade para se locomover. Mesmo sobrando um lugar, calculei que ele ficaria mais confortável se dispusesse de mais espaço. Por isso permaneci de pé, enquanto um rapazola na terceira cadeira mostrava-se indiferente a tudo a sua volta, enfiado na tela do celular.
O idoso me agradeceu e perguntou:
_ Mas você vai ficar de pé?
_ Não se preocupe, estou bem.
A essa altura a esposa daquele senhor já tinha desaparecido entre as gôndolas do supermecado.
Passados uns segundos, o rapazola se levantou falando ao inseparável celular, e sumiu também. Aproveitei para me sentar, agora com espaço suficiente para nós dois, eu e o idoso.
Talvez estimulado pela minha atitude, o senhor resolveu puxar conversa.
_ O corpo pesa aos 81 anos - comentou.
_ Mas o senhor está bem para a idade - respondi.
_ É _ retrucou ele _ Eu me cuido. Mas já tenho tudo que a idade permite!
Ele me contou então sobre o câncer de próstata, o diabetes, problemas na lombar e na sola do pé. "Tudo controlado", acrescenta. Só depois, quando eu já estava totalmente envolvido pela fala daquele homem, notei que lhe faltavam duas falanges no indicador direito.
_ Mesmo com tudo isso continuo trabalhando - prosseguiu - Em casa, no computador. Poucos na minha idade ainda trabalham.
Contou-me que teve uma carreira de muitos anos na Mercedez-Benz, aposentou-se por lá e depois continuou trabalhando numa das empresas que tinham negócios com a fábrica alemã. Mudou-se para Indaiatuba por ser mais perto de Campinas-SP, onde trata o câncer de próstata. "Preciso tomar injeção a cada 89 dias", explicou, preciso.
O velho me disse que sempre foi otimista. As limitações físicas não mudaram isso. Fiquei curioso sobre suas origens. Ele me contou que nasceu em Rio do Sul, pequena cidade catarinense. O avô, tcheco, veio ao Brasil na virada do seculo passado (o XX, para evitar confusões aos que são desta época), já embarcado no navio com emprego garantido na instalação de uma rede de telégrafos. Naquela época, o Brasil ainda era uma terra por desbravar; a República, ainda menina, dando os primeiros passos, às voltas com revoltas como a Guerra de Canudos, que tinha sido barbaramente contida em 1897, um crime denunciado por Euclides da Cunha em "Os Sertões"... Foi este o mundo que o avô do meu novo amigo encontrou.
_ Ele estendeu telégrafos do Pará ao Rio Grande do Sul - contou. "No Pará, pegou febre amarela e ficou abandonado no meio do mato pra morrer. Indígenas o encontraram, fizeram uma maca com cipó trançado e o levaram até o povoado mais próximo. Fizeram barulho pra chamar a atenção do homem branco e, quando tiveram certeza de que foram notados, se enfiaram de volta na mata deixando meu avô para ser socorrido.
"Recuperado, meu avô retomou a tarefa que lhe tinha sido confiada. Atravessou o país até o Rio Grande do Sul, instalando os cabos telegráficos. Quando acabou, voltou um pedaço do caminho até Santa Catarina, nao sei por quê, e se fixou na cidade de Rio do Sul, onde se casou com minha avó".
_ Talvez ele tenha voltado por causa dela!_ Sugeri
_ Acredito que sim - respondeu o idoso.
Ele me falou das lembranças que tinha, das grandes guerras... "foi sofrido aqui pro Brasil também. Meu avô foi convocado para as duas guerras, nao foi pra nenhuma. Na primeira, passou a ser considerado desertor. Na segunda, convocado de novo, resolveu se naturalizar brasileiro. Estava cansado daquela merda, ele dizia.
"Ele não podia ter rádio na segunda guerra, por ser considerado estrangeiro, mas meu pai brasileiro tinha. Ainda me lembro do velho Zenith. Toda noite, meu pai e meu avô ouviam as notícias, e eu, meninote, já acompanhava também. Até hoje, quando vejo os documentários do History Channel sobre a Segunda Guerra Mundial, há quem me critique por esse gosto, mas eu respondo: eu vivi isso!"
O idoso viajou várias vezes para a Europa, sempre a trabalho para a Mercedez-Benz. Conheceu a cidade onde o avô nasceu, na República Tcheca (esqueci o nome impronunciável para mim), visitou Itália, Alemanha e Viena. "Na Alemanha Oriental, reparei que todos os telhados eram novos. Perguntei a um alemão o motivo daquilo. Ele explicou que durante o domínio soviético todos viviam com goteiras dentro de casa, porque não havia telhas. Com a queda do muro, a primeira coisa que fizeram foi comprar telhas no lado ocidental para consertar os telhados". Aquele homem diante de mim, de cabelos brancos e porte arqueado, viu muito, aprendeu muito, e continua disposto a seguir adiante.
Não sei quanto tempo ficamos conversando, mas posso garantir que foi mais do que eu merecia e menos do que gostaria. Minha mulher terminou as compras antes de eu me lembrar de perguntar sobre filhos e netos que provavelmente teve. Mas não me esqueci de perguntar seu nome.
Manfred, confirmando as origens nórdicas da família. Também resume um pouco de sua história, pois significa " homem de paz forte".
Nunca lamentei tanto o fim da espera num supermercado.
Nota: diferentemente do que Manfred me contou, os estrangeiros podiam, sim, ter rádios em casa durante a segunda guerra, mas a censura ao que podia ser ouvido era feroz. Transmissões de países do Eixo, por exemplo, eram terminantemente proibidas. A ditadura Vargas determinava o que os estrangeiros podiam ouvir. Ou seja, é quase como se não pudessem mesmo ter rádios.


Comentários
Postar um comentário