PANGEIA

 





Imagem criada por I.A.



PANGEIA

SINOPSE

     A Terra passou por uma hecatombe climática e sucumbiu ao aquecimento global. Os sobreviventes lutaram pela manutenção da raça humana e, devido à escassez de recursos, muitos foram expulsos do planeta e exilados na lua Europa.

      Milhões de anos se passaram. A Terra agora se chama Pangeia. Fronteiras desapareceram e a sociedade é como uma grande família planetária. O ser humano alcançou evolução intelectual e moral. O "mandamento do amor" é a única legislação, e há um grande esforço para resgatar os exilados de Europa, agora chamada Orbe Vermelho. 

     Neste novo mundo, Eva, uma mulher da antiga Terra, é despertada de seu sono criogênico, ao qual foi condenada por suas posições em defesa da natureza e da paz, séculos antes do holocausto climático. 

     Agora ela precisa aprender a viver neste novo mundo, onde não há dinheiro nem relógios. Um lugar onde a caridade é a regra de conduta. 


PANGEIA 

autor: Toro

1


     O despertador tocou um trecho da Nona de Beethoven, enchendo o quarto de música. Anthero abriu os olhos e esperou um pouco antes de desativar o som. Era um de seus trechos favoritos. Um grande prazer o envolvia ao acordar com aquela música e ele simplesmente não enjoava daquilo, repetindo-se todas as manhãs.

     Um pensamento fez com que a opacidade do filme na janela se tornasse mais e mais translúcida, até a gradação ideal para observar a paisagem lá fora sem que a luz o ofuscasse. O dia começava ensolarado e promissor. Com outro pensamento, Anthero desligou o despertador e saltou da cama para sua rotina de exercícios. Meia hora depois, estava à mesa tomando seu café da manhã: compostos energéticos com aparência de água, mas que mudavam de sabor de acordo com as preferências dele. Pão com manteiga, café com leite, queijo, ovos e bacon, tudo sorvido na forma do líquido nutricional. A cada gole um gosto totalmente diferente, sem os inconvenientes dos níveis altos de gordura ou açúcar que os alimentos reais apresentariam. A única desvantagem do composto energético era a aparência um tanto insípida, que não despertaria nenhum apetite nos humanos ancestrais que habitavam o planeta na Fase da Terra. Mas o mundo mudou muito desde então, assim como as pessoas - não apenas a comida. O corpo de um cidadão de Pangeia rejeitaria violentamente uma refeição da antiga Terra, tantos milênios distante no tempo. 

     Anthero terminou de se alimentar e foi até a Sala de Conexão. O ambiente exalava um aroma suave e uma melodia envolvente. Nada nas paredes, no chão ou no teto. Apenas uma superfície branca que fazia tudo se dissolver em meio a um banho luminoso, dando a forte impressão de que nada mais existe de individual e todas as coisas se tornam uma só. Não demorou muito para Anthero se sentir em harmonia com toda a população de Pangeia. Era transcendente. Uma experiência de onipresença inebriante e sedutora. Anthero apreciou por alguns instantes aquelas sensações antes de buscar o contato específico que desejava. Foi como sintonizar um rádio, só que sem o rádio. Telepatia em alto nível. O objetivo era receber o informe da CAS - Central de Atendimento Social. O primeiro boletim, que veio como uma intuição, deu conta do número de flagelados recepcionados naquele dia: treze. Anthero sentiu um misto de alegria e angústia. Alegria porque cada um daqueles visitantes representava uma oportunidade de praticar as virtudes capitais, a caridade principalmente. Tristeza porque ele sabia que o número de necessitados era muito maior, mas a capacidade de atendimento era limitada. 

     Logo depois do primeiro boletim começou a preleção do Reitor. A voz macia e grave transpirava bondade; representava segurança e consolo. O povo ouviria aquelas exortações, cada um no momento que mais lhe conviesse. As grandes transmissões internacionais tinham sido trocadas por este sistema mais abrangente e eficiente. Praticamente toda a população mundial teria acesso às palavras do mestre.

     - Cidadãos de Pangeia. Graça e Paz. Agradecemos ao Criador a oportunidade de mais um dia para exercer a caridade e aprimorar nossos conhecimentos. Como todos sabem, recebemos hoje mais treze irmãos necessitados, oriundos do Orbe Vermelho, o mundo gêmeo que gira em torno de Júpiter - a antiga lua Europa, como era conhecida na Fase da Terra. Peço a todos que se lembrem que num tempo distante, nosso próprio mundo vivia numa situação ainda pior do que esta em que o Orbe Vermelho se encontra hoje. Guerras, fome, doenças e desastres naturais assolavam nossa amada Pangeia, quando ainda era chamada Terra. O homem não conseguia superar seu egoísmo, e tudo que obtinha com seu comportamento irracional era frustração e dor. O desrespeito à natureza causava tragédias de todos os tipos: enchentes, secas, deslizamentos de terra e, finalmente, o superaquecimento do planeta que quase representou nossa extinção. Nossos ancestrais humanos buscavam com empenho, sem se darem conta, a própria destruição. Foi preciso chegar ao limite do suportável, a um passo do extermínio, para que retomássemos o caminho da harmonia e da luz. Muitos pereceram no processo. Mas pela eterna bondade do Grande Criador, nos reerguemos. Avançamos na ciência e encontramos no Mandamento do Amor a filosofia necessária para nossa sobrevivência e aprimoramento. Todas as outras regras, constituições das ultrapassadas nações e mesmo mandamentos e dogmas religiosos deram lugar a essa única regra, perfeita em seu conceito: o Mandamento do Amor. Fronteiras desapareceram - por isso adotamos o nome de Pangeia para nosso lar. Embora os antigos continentes continuem geograficamente iguais ao que eram há milênios na Fase da Terra, a organização política e social tornou-se uma coisa única, coesa e harmoniosa, unindo diferentes povos no respeito mútuo. Nossa Pangeia não é uma massa única de terra como no passado, mas uma coligação de sentimentos e valores que unifica corações e mentes num único interesse: o bem comum. Noções retrógradas foram abolidas. Todas as raças, todas as formas de sexualidade são respeitadas. Cidadãos, uma vez curados, podemos e devemos curar. Por isso a visita de nossos irmãos em dificuldades. Lembro a todos da importância da humildade. Não se julguem superiores por estarem na posição de socorristas. Tenham sempre em mente que cada um dos visitantes do Orbe Vermelho representa uma oportunidade de emancipação moral para todos nós. Um caminho para a evolução rumo a um mundo melhor que nos espera, mas que só poderá ser alcançado através da longa estrada da caridade. O conhecimento é importante, a busca da qualidade de vida é um dever, mas apenas a Caridade promove nossa evolução. Ela, cidadãos, é fundamental. Sem ela, nada mais faz sentido. Por meio dela, tudo se torna claro. Trabalhemos, portanto, sem descanso, em favor de nossos irmãos flagelados e também na solidariedade com nossos colegas de jornada, sempre pautados pela única lei que prevalece: o Mandamento do Amor. Graça e Paz a todos.

     As palavras do Reitor reverberaram no cérebro e no coração de Anthero por longos momentos enquanto a conexão se desfazia e ele voltava a mergulhar no turbilhão de consciências dos outros cidadãos de Pangeia. Era como se todos fossem um na Sala de Conexão. Ainda estava neste processo quando intuiu o chamamento de Heráclito. Concentrou-se com mais ênfase e alcançou a mensagem de seu mentor direto. 

     - Graça e Paz, Anthero.

     - Graça e Paz, Heráclito. 

     - Fique feliz, meu amigo. Além da nossa missão suprema de amparo aos flagelados, outra tarefa foi designada a você. Depois de muitos milênios, um dos degredados despertou. 

     Anthero ficou espantado. 

     - Que grande notícia, mestre! De quem se trata?

     - Seu nome é Eva. Ela acordou do estado de sublimação há alguns meses e vem reaprendendo a controlar o próprio corpo desde então. Está no Centro de Reintegração se adaptando aos compostos energéticos e mostrou muito bom humor ao comentar sobre a saudade que sente de um belo bife acebolado - os dois riram. - Também já entende a situação em que está, e que a Terra que ela conhecia não existe mais há milhares de anos. Foi um choque, como sempre acontece nesses casos, mas ela reagiu bem. É uma pessoa muito inteligente, curiosa e, devo avisar, ansiosa e temperamental. Uma personalidade cheia de energia. Como todos que habitaram o planeta durante a Fase da Terra, Eva é um espírito antigo, mas não tem consciência plena de suas inúmeras vivências. É como uma criança que não conhece a própria força. 

     - Quem se encarregará da educação dessa criatura fascinante, mestre?

     - É por isso que entrei em contato com você, Anthero. Achamos que você está pronto para receber seu primeiro aluno. Uma aluna, no caso.

     Anthero ficou de boca aberta e olhos arregalados, incapaz de responder. Só depois de um tempo assimilou a notícia.

     - É uma grande honra, mestre, mas acho que não sou capaz, muito menos digno da missão.

     - Isso é uma das provas de que está pronto, meu querido amigo. Essa humildade vai ser muito útil ao lidar com uma pessoa tão diferente, intempestiva e - temos que admitir - ignorante.

     Anthero baixou a cabeça, tomado de emoção. Ao erguer os olhos, fez uma breve súplica por coragem para o desafio que se lhe apresentava, e um agradecimento silencioso antes de responder.

     - Eu aceito a incumbência com alegria, Heráclito. Que o Criador me ajude.


2



     Os meses seguintes foram de muito trabalho. Enquanto ajudava no tratamento psicossocial dos novos flagelados, Anthero também dedicava parte de seu tempo aos preparativos para receber sua primeira aluna. Tratou logo de imergir na história da Fase da Terra, com ênfase em usos e costumes do povo antigo. Queria que o choque cultural, inevitável naquela situação, fosse o menos incômodo possível para os dois. Muito daquele modo de vida já era conhecido de Anthero, mas o bom senso mandava relembrar as antigas lições sobre o mundo ultrapassado que Eva conhecia. Monstruosidades impensáveis como a violência contra os mais frágeis, contra os animais e a própria natureza, foram estudadas em detalhes. Anthero sentia sua energia vital tornar-se turva e pesada durante esses estudos, mas perseverou. Também o lado positivo foi estudado, para alívio dele, como os avanços da ciência, a solidariedade nascente, a busca pela paz que envolvia alguns corações, apesar do turbilhão da guerra. Era uma sociedade de incoerências fascinantes, em que o mesmo povo capaz de matar um semelhante por motivos fúteis também buscava forças inimagináveis para socorrer vítimas de emergências ou pessoas desamparadas. Sem dúvida aquele era um mundo em formação, sem nada que indicasse para que lado penderia a balança: se para a evolução moral e intelectual, se para a degradação absoluta. Viviam todos no fio da navalha, os contemporâneos de Eva. 

     Eva. Ela era outra parte de sua preparação. Teve acesso a todos os arquivos sobre a futura aluna. Entendeu por que ela foi colocada entre os degredados - aqueles que foram banidos da sociedade na época da hecatombe climática. Eva era uma cientista brilhante, segundo os critérios da física rudimentar conhecida então. Foi uma das defensoras de medidas severas que evitassem o Aquecimento Global. Pregou no deserto, aparentemente. Todos preferiam alardear o medo de um holocausto nuclear numa guerra entre potências, ou a Inteligência Artificial então nascente tomando o controle de tudo e lutando para extinguir a raça humana. Como eram infantis em seus medos… deixavam o pior de lado e se concentravam em fantasias de ficção científica. Eva lutou contra essa cegueira, diz o relatório, a ponto de ser presa, acusada de traição pelo governo beligerante do país em que nasceu. Quando as autoridades da Fase da Terra desistiram de condicioná-la, resolveram condená-la ao desterro. Algo considerado pior do que a morte. Eva ficaria aprisionada em aparelhos chamados ˜urnas de sublimação”, em animação suspensa por toda a eternidade, ou até o fim do mundo. Muitos tiveram destino semelhante. Muitos morreram sem chance de despertar. Outros foram reanimados quando a sociedade finalmente se reorganizou, milênios depois. Mas alguns não suportaram tamanha transformação e cometeram o pior dos crimes: tiraram a própria vida. O último a ser despertado, antes de Eva, conseguiu se adaptar. Isso foi há mais de 5 séculos. Leon viveu por 50 anos em Pangeia, totalmente integrado, e teve uma morte tranquila. Outros poucos antes dele também tiveram sucesso, mas de repente as urnas de sublimação começaram a indicar que seus ocupantes não estavam em condições de passar pela reanimação. Consequência de sua compleição física ou dos estragos causados às urnas pela radiação do Sol sem a proteção da camada de ozônio? Os cientistas modernos não conseguiram descobrir a causa verdadeira, e preferiram esperar até que alguém apresentasse as condições indispensáveis para o despertar.     

     Foi o que aconteceu com Eva, tantos séculos depois de Leon. 

     Anthero espera que ela consiga se adaptar. A alternativa seria uma grande tragédia para todos os cidadãos de um modo geral, e para ele em especial. Deseja de todo coração que seu primeiro aluno alcance o sucesso, não por vaidade, mas porque isto renovaria a esperança na habilidade humana de aprender, crescer…evoluir. Algo que todos os seres humanos necessitam. Mesmo os cidadãos modernos de Pangeia. Algo que foi conquistado 500 anos atrás com Leon, mas que não se repetiu desde então. Esperança, o alimento da alma. Vital como o ar, a água. Sem ela não há movimento, e sem movimento não há evolução. Eva é o receptáculo desta grande fonte de vida, a esperança de Pangeia. 

     Enquanto Anthero se dedicava aos preparativos para o início das aulas, Eva se esforçava por entender os rudimentos do novo mundo que se descortinava diante dela. Ainda sofria muito com os compostos energéticos. Não conseguia entender como era possível mudar o sabor de um líquido insípido apenas com o pensamento. Na maioria das vezes sua refeição se limitava a um copo d’água e um gole do composto, igualmente destituído de sabor. Mas lentamente ia descobrindo os segredos da concentração, quase inatos nos cidadãos contemporâneos, mas difícil de alcançar para alguém como ela, que viveu numa época de barulho, distrações e falta de foco. O fato de ter sido cientista em sua vida pregressa a ajudava muito, assim como sua curiosidade quase obsessiva. Queria saber tudo, o quanto antes, sem paciência para receber as instruções mais básicas. A equipe de reanimação se divertia com aquilo ao mesmo tempo que não via a hora de deixá-la pronta para o mestre, encarregado de ensinar a ela as lições mais importantes. Os valores daquela sociedade complexa. 

     A verdade é que Anthero também estava ansioso, mas sabia lidar bem melhor com isso do que a futura aluna. Eva sentia-se insegura e assustada, o que era absolutamente justificável. Estava reaprendendo a andar, falar, até controlar suas necessidades fisiológicas. Era como um bebê recém-nascido mas, ao mesmo tempo, não dispunha de toda uma infância para dominar essas rotinas. Queria vencer aquelas barreiras o quanto antes, aprender tudo que havia para aprender, se tornar independente o mais rápido possível. A falta de paciência que sempre a acompanhou sobreviveu intacta ao processo de sublimação. Exigia sempre mais de seus tutores. Mais tempo, mais dedicação e empenho para que ela pudesse vencer as dificuldades. Chegava por vezes ao limite da grosseria. Nessas ocasiões era amavelmente advertida a conter o entusiasmo exagerado - e isso apenas a deixava mais irritada e frustrada. Via naquele grupo de cuidadores exemplos de autoridade, e ela nunca lidou bem com as autoridades, qualquer que fosse o tipo. Sua atitude tornou sua recuperação mais difícil e demorada do que o previsto, mas pelo menos serviu para dar mais tempo a Anthero para se preparar e ganhar confiança diante da missão que tinha pela frente. 

     Quando finalmente recebeu a notícia de que estava pronta para iniciar a inserção na sociedade, o bom coração de Eva superou seu gênio difícil. Agradeceu aos tutores com lágrimas nos olhos e abraços apertados. Estava radiante, como sempre ficava quando era colocada à frente de um mistério científico ou um desafio. Seus tutores sentiram-se felizes pela tarefa bem feita que realizaram. Talvez, também, apenas um pouco gratos por aquele festival de ranhetice ter chegado ao fim - pelo menos para eles. Mas admitiram todos que sentiriam saudade de tanta impulsividade animando os corredores do Centro de Reanimação. 

     No dia seguinte o coordenador do centro fez as apresentações:

     - Eva, apresento-lhe Anthero, seu professor. Anthero, esta é Eva, sua aluna.

     Os dois sorriram. Eva apertou a mão que Anthero lhe estendeu, e assim começou uma nova fase na vida de ambos.


3


     Anthero sentia-se por vezes sufocado por aquela avalanche chamada Eva. Nunca conhecera alguém como ela. Parecia feita de pura energia. Ao mesmo tempo, sua curiosidade viva e sua fome de saber eram fascinantes. Nas duas primeiras semanas que passaram juntos, a aluna fez mais avanços do que o professor julgava possível - ao menos, no campo das ciências. Nas relações sociais e conceitos filosóficos, porém, nem tanto. 

     Logo que saíram do centro de reanimação, duas semanas atrás, Anthero achou que seria interessante levar a aluna a um passeio pela cidade. Tomaram um transporte onde já viajavam outros cidadãos, com diferentes destinos. O veículo tinha paredes translúcidas, como o apartamento de Anthero, e se movia sem qualquer trepidação alguns metros acima dos prédios. Sua transparência deixou Eva um pouco assustada, agarrando-se firme ao braço de Anthero, com a impressão que ia despencar dali a qualquer momento. Anthero se divertia com aquilo, mas garantiu a Eva que ela estava muito mais segura do que num avião ou ônibus da Fase da Terra. Os veículos pareciam se mover em total desorganização, sem qualquer referência a regras de trânsito, mas ainda assim, não se tocavam, por mais perto que passassem uns dos outros. Não precisavam desviar. Era como se mudassem de densidade para evitar colisões, mesclando-se sem nenhum choque ou risco para os passageiros. Eva observava mas não podia acreditar no que via. 

     - Isso vai contra todas as leis da física! - exclamou Eva, chamando a atenção e provocando alguns risinhos complacentes dos passageiros mais próximos. 

     - Correção, minha cara aluna, contra as leis da física que você conhece. Mas muito se descobriu desde Einstein. Se serve de consolo, ele não estava errado. Apenas não tinha alcançado todo o mistério do Universo. 

     Depois daquela primeira viagem muitas outras se seguiram. Aos poucos Eva foi conseguindo fazer uso daquele estranho transporte sem manter a boca permanentemente aberta. E para alívio de Anthero, seu braço parou de ser esmagado pelas mãos firmes da aluna. 

     - Logo você estará pronta para o disco de transporte - disse Anthero. 

     Eva olhou para ele de olhos arregalados, tentando imaginar o que seria aquilo. 

     As dúvidas mais urgentes de Eva se encontravam no campo da sociologia e da política. Queria entender como Pangeia estava organizada e bombardeava Anthero com perguntas sobre isso sempre que tinha uma chance.

     - Quem são os líderes por aqui? - quis saber.

     - O conceito de líder é diferente em Pangeia. Pelos seus critérios, acho que se refere ao Reitor. 

     - Reitor? Como numa universidade?

     - Não lhe parece adequado, já que Pangeia nada mais é do que uma grande escola, e todos não passamos de alunos? O próprio Reitor também é um aprendiz. Está em outro nível de aprendizado, mas também é um aprendiz. 

     - Mas você é meu professor…

     - Está incorreto, minha cara. Eu não “sou” seu professor. Eu “estou” seu professor. E minha maior alegria será quando você me ensinar alguma coisa. Tenho fé que isso acontecerá. 

     - Quando o Reitor foi eleito? Quantos votos recebeu?

     - O Reitor não chegou a esta posição por um processo eleitoral. 

     - Ah não? É um ditador?

     - De forma alguma. Sua posição foi conquistada de modo natural, fruto de uma vida inteira de esforços e aprendizado. Garanto a você que ele não desejava o cargo, imbuído muito mais de responsabilidades do que de alegrias. Em Pangeia, ninguém se disporia a assumir um cargo para o qual não estivesse preparado, e este é um dos motivos porque uma eleição não funcionaria aqui. Pelo que estudei do seu tempo, a ganância e o desejo de poder eram as principais motivações dos políticos, mais preocupados em vencer eleições do que cuidar do bem comum. Aqui a escolha do Reitor foi feita da mesma forma que todas as atribuições são distribuídas aos cidadãos: pelo mérito. Em casos duvidosos, usamos a Sala de Conexão para fazer uma reflexão em conjunto, pedindo ao Criador que nos dê esclarecimento. 

     - Mas tem que existir algum tipo de hierarquia…

     - Há diferentes níveis de evolução, mas somos todos companheiros de jornada. 

     - Mas como vocês se organizam sem uma liderança? Quem dá as ordens? Quem define as prioridades?

     - Todos e cada um sabemos o que devemos fazer e tentamos fazê-lo da melhor forma possível. É claro que alguns pedem favores, outros solicitam alguma tarefa… Mas não são ordens, são pedidos. 

     - Mas quem faz as tarefas chatas ou degradantes? Você vai me desculpar, mas desde que estou aqui não vi você pegar numa vassoura nem uma vezinha sequer. Deve ter uma empregada. 

     - No nosso mundo nenhum trabalho é degradante. Apenas o mau é degradante. E não, ninguém tem “empregados”. Desenvolvemos máquinas automatizadas que fazem todo o serviço pesado, para que possamos dedicar nossos esforços às tarefas que realmente importam. Sua educação, por exemplo. Ou o socorro aos flagelados. 

     - Os flagelados… quem são eles?

     - São seres humanos como nós. Foram exilados milênios atrás, depois da Hecatombe Climática, no Orbe Vermelho, um mundo que você conheceu como a lua Europa. Foram enviados para lá num ato egoísta de nossos ancestrais que não tinham o suficiente para toda a população do planeta. Nosso grande objetivo é conseguir que todos retornem para Pangeia, mas isso é dificílimo. Ao contrário do que possa parecer, nossos recursos são escassos. Se nada falta, é porque aprendemos a dividir. Seguimos a filosofia do suficiente: que nada falte, que nada sobre. Sabemos que para avançarmos como planeta, temos que seguir todos juntos. A evolução não será possível enquanto um único cidadão for deixado para trás. 

     - Entendi. São comunistas.

     Anthero não conseguiu segurar uma gargalhada. Há décadas ele não ria tanto. 

     - Você fala como quem enxerga ganho apenas nas coisas materiais. Para nós, a maior riqueza é moral e espiritual. Os bens materiais pouco valem, e a falta deles não deve ser um empecilho em nossa busca por evolução. Por isso cuidamos com zelo para que todos tenham o necessário para viver com dignidade, sem que isto se torne uma preocupação que mine suas energias e tire o foco do mais importante. Por outro lado, estimulamos o livre pensamento e aplaudimos os progressos de nossos concidadãos. Jamais imporíamos limites à evolução de uma pessoa em nome de uma utópica “igualdade”. Creio que era isso que os seus “comunistas” faziam, não? A diferença é boa, em Pangeia. Não é motivo para perseguição ou desrespeito. Amamos a diversidade, seja sexual ou de raça. 

     - Tá legal, tudo é muito perfeito por aqui. Pode me contar qual é a pegadinha.

    Anthero ficou confuso:

    - “Pegadinha”? 

     - Claro, pegadinha! Deve ter alguma coisa errada, essa maravilha toda deve ter um preço.

     - Acho que entendi o que quer dizer. Claro que tem um preço. E todos pagamos alegremente. Temos que ser caridosos. 

     - Só isso?

     - Acha pouco?

     - E não é?

     - Talvez seja a hora de definir o conceito de caridade à luz de Pangeia. Temos que colocar o bem estar de nosso próximo acima do nosso próprio bem estar. Festejamos a chegada de cada espaçonave com flagelados do Orbe Vermelho porque, para nós, cada um deles representa uma oportunidade de oferecer ajuda, consolo e amor. 

     - Mas se você só pensa nos outros, como vai conseguir se manter?

     - Ora, minha cara Eva, parece tão óbvio… Num mundo em que todos se preocupam com todos, ninguém jamais ficará desamparado. 

     Toda aquela enxurrada de perguntas silenciou diante daquela lógica inabalável. Mas Eva não desistiu.

     - Estou começando a ficar assustada… Todos pensando do mesmo jeito, agindo da mesma forma, com um mesmo objetivo… Estou começando a achar que vim parar no “Admirável Mundo Novo”…

     - Nada mais longe da verdade, querida aluna. Pangeia é bem diferente da distopia de Huxley. 

     Eva ficou surpresa por Anthero conhecer um autor tão “antigo”. 

     - No mundo de Huxley, as pessoas são condicionadas a fazerem as mais diferentes tarefas através de engenharia genética e técnicas de hipnose. Simplesmente não sabem que existe algo melhor do que aquilo que lhes é oferecido. Mesmo a alegria é artificial, e se resume às doses diárias de ˜soma˜. Aqui em nosso mundo, temos o livre arbítrio. Podemos fraquejar, como muitas vezes acontece. O erro não é um crime, mas uma parte do processo de crescimento. A diferença é que não condenamos, ajudamos. Não julgamos, apoiamos. Não precisamos de ˜soma” para sermos felizes. Nós somos nosso próprio "soma". 

     - Mas então, como vocês conseguem harmonia sendo tão individuais e diferentes?

     - Diversidade não leva ao caos onde há respeito. - respondeu Anthero com um sorriso. 

     - Ok, Anthero, tudo muito bonito, mas tem que ter alguma regra em algum lugar… alguma lei.

    - Claro que sim. Ela se chama “Mandamento do Amor”.

     - Essa não! Vocês são católicos!

     Anthero gargalhou de novo.

     - Tranquilize-se, minha aluna. Não somos católicos, nem budistas, muçulmanos ou hindus, ou maçônicos, ou protestantes, ou membros de qualquer outra religião. Elas estão extintas há milênios. 

     - Mas essa lei foi criada por Jesus.

     - Na Fase da Terra, sim. Mas a verdadeira origem está no Criador. 

     - O “criador”? Deus?

     - Pode dar este nome se isso a ajudar a compreender. Mas o mais importante é que entenda o Mandamento do Amor. Amar ao próximo como a si mesmo. A lei que supera todas as outras. Por meio dela, abolimos as fronteiras entre os países e conquistamos o direito de rebatizar nosso mundo com o nome de Pangeia. A terra que antes era formada por um único continente com diferentes sociedades, agora abriga uma única sociedade apesar dos continentes separados. Querida Eva, tenha sempre em mente que tudo que sustenta nossa sociedade está apoiado neste único alicerce: o Mandamento do Amor. 

     Eva se calou, absorvendo tudo o que ouviu.



4


     - Como você sabe que horas são?

     Anthero percebeu que sua aluna tinha acordado com a “corda toda”, como se usava dizer na Fase da Terra. 

     - Eu não sei que horas são. Minha percepção do horário é apenas aproximada e se baseia na posição do sol no céu. Também possuo uma certa simbiose com o planeta, que vai se aprimorando ao longo dos anos. Você também desenvolverá essa habilidade com o tempo. 

     - Mas como você não perde nenhum compromisso, uma reunião, um trabalho? Como você sabia a que horas tinha que me pegar no Centro de Reanimação?

     - Nada disso é regido pelo relógio. Fazemos as coisas quando queremos ou quando podemos. Se não podemos ou não queremos fazer algo, sempre há alguém por perto em condições de nos substituir. 

     - Puxa, isso é meio triste - respondeu Eva.

     - Mas também é uma grande lição de humildade para todos nós - retrucou Anthero.

     - Pode até ser… mas eu ficaria muito chateada se você não tivesse ido me buscar pessoalmente no Centro de Reanimação.

     - Isto, minha cara, não tinha a menor possibilidade de acontecer. 

     Eva sorriu, satisfeita com a resposta. 


5


     Aquela pergunta sobre o relógio e os compromissos indicou a Anthero que era o momento de falar sobre a Sala de Conexão e as habilidades telepáticas que facilitavam a integração entre os cidadãos e tornavam possíveis os encontros, mesmo à distância. Também seria necessário explicar o conceito de “mensagens perenes”, mas isso seria fácil para Eva, acostumada com os serviços de streaming em sua época. 

     - A Sala de conexão nos ajuda a acessar todo o conhecimento conquistado. Tudo que precisamos fazer é focar no que queremos estudar. É como estender a mão até a estante de uma biblioteca e pegar o livro desejado. Da mesma forma, todos os comunicados importantes ficam disponíveis para acesso no momento que melhor aprouver ao cidadão. Não temos o conceito escravizante da “urgência”. 

     - Mas e se o mundo de repente for explodir?

     - Não adiantaria muito a gente saber disso…

     Eva não desistiu, para variar:

     - Mas e se o mundo estivesse numa rota de destruição, fadado a desaparecer se nada fosse feito?

     Anthero notou a importância daquela pergunta para Eva: foi exatamente o que aconteceu com a Terra que ela conhecia. 

     - Querida Eva, me responda: seu mundo foi destruído de uma hora para outra? Você, que muito avisou sobre os perigos do Aquecimento Global, sabe melhor que ninguém que não foi assim. Se algo dessa magnitude fosse acontecer, garanto a você que todos estaríamos cientes com séculos de antecedência. Aprendemos a lição. E faríamos tudo ao nosso alcance para mudar o rumo das coisas. E se não fosse possível, ficaríamos resignados e focados em impedir o sofrimento dos cidadãos, no limite do possível. 

     - Mas se um doido resolvesse apertar o botão da Guerra Nuclear não daria tempo de fazer nada disso. 

     - Seria interessante ver como alguém faria isso num planeta totalmente desprovido de armas nucleares ou de qualquer outro tipo. 

     - Quer dizer que Pangeia não tem nenhuma arma?

     - Nem mesmo um estilingue.

     Os dois riram. 

    - Mas como vocês mantém a segurança sem uma polícia armada?

     - Da mesma forma que vivemos com pouco: um cuida do outro. 

     Eva refletiu um pouco em silêncio sobre o que ouvira antes de formular sua próxima pergunta:

     - Entendo que vocês são muito evoluídos e tal e coisa, mas tento imaginar se não há nenhuma situação em que vocês precisem usar a força. Nem que seja para impedir um mal maior ou proteger um inocente. 

     Anthero olhou para a aluna e, de repente, seu semblante tornou-se soturno. 

     - Sim, há momentos em que precisamos usar a força. Temos recursos para aplicá-la infligindo o mínimo de sofrimento… mas é força, de qualquer forma. E sempre que ela é usada, significa que o bom senso e a caridade falharam. É uma derrota para toda a sociedade.

     Eva percebeu que tocou num ponto sensível, e tentou ser o mais cuidadosa possível:

     - Como submetem o adversário sem armas?

     - Eu não chamaria de adversário, mas de paciente. Qualquer um que necessite ser contido certamente precisa de tratamento e ajuda. Nossa telepatia avançada permite “paralisar” uma pessoa sem o uso de armas, com a força do pensamento. Garanto que é mais doloroso para quem aplica a técnica do que para quem sofre seu efeito. Repito, fazemos isso apenas quando tudo mais falhou: o diálogo, a inteligência, a paciência, a caridade. 

     - E quem são os pacientes, normalmente?

     - Membros de nossa própria sociedade que por algum motivo perdem a esperança, entregam-se ao orgulho ou à ganância, ou são acometidos de alguma doença psíquica. Mais frequentemente, são nossos irmãos flagelados que chegam do Orbe Vermelho. Normalmente estão angustiados, não compreendem a transição daquele mundo decadente para nosso planeta em evolução. É preciso que você saiba, querida Eva, que eles são pessoas como nós… mas foram submetidos desde o nascimento a péssimas condições de um mundo infinitamente inferior, para onde seus ancestrais foram enviados à força milhares de anos atrás. 

     - Sim, você mencionou que muitos foram para o exílio por causa da fome e da falta de recursos aqui na Terra para sustentar a todos. Mas qual foi o critério para decidir quem partiria e quem ficaria?

     - Os critérios foram os mais vergonhosos que se possa imaginar. Os líderes planetários da época escolheram os mais fracos e as minorias. Negros, homossexuais, pessoas com doenças incuráveis, deficiências físicas ou mentais. O que eles costumavam chamar de “párias”. Nunca soubemos com certeza, por mais que pesquisássemos, por que os líderes não decidiram simplesmente promover um genocídio e acabar com todos os que “não se encaixavam” ou eram mais fracos. Só podemos imaginar que, mesmo sendo bárbaros sem coração, eles devem ter intuído que o assassinato daquelas pessoas seria um crime muito maior. Como resultado, milhões de pessoas foram embarcadas em espaçonaves para o Orbe Vermelho. Lá, tentaram sobreviver nas colônias em condições muito mais precárias do que na Terra. O Orbe Vermelho é o que você chamaria de prisão ou, para ser mais exato, inferno. Mas mesmo nessas condições monstruosas, os exilados encontraram uma forma de sobreviver. Apesar de serem erroneamente considerados inferiores por seus algozes, provaram-se hábeis, competentes, fortes até demais… em muitos aspectos, mais avançados que aqueles que os desterraram à revelia. Essas habilidades garantiram sua sobrevivência, mas o sentimento de frustração e ódio envenenou seus espíritos. Hoje a organização política e social do Orbe Vermelho é muito parecida com o que você vivenciava na primitiva Terra: há disputa de poder, segregação, guerras, violência. Os poucos que lutam contra os baixos instintos mal conseguem se expressar. São estes os que temos trazido de volta. Estão em condições de pelo menos tentar uma adaptação ao modo de vida de Pangeia. Mas esse resgate é cheio de limitações, não apenas da parte dos habitantes do Orbe Vermelho, mas também por conta de nossos recursos, que são limitados. Paralelo a esse esforço, enviamos emissários regularmente até o Orbe Vermelho, para tentar influenciar e instruir a população de modo que reencontrem o caminho do crescimento, da justiça e da caridade e, dessa forma, reúnam o mínimo de condições para retornar a Pangeia um dia. Nossa obrigação é resgatar a todos. Uma tarefa que, como você pode imaginar, não veremos concluída. Não nas próximas gerações. 

     - Coitados dos cidadãos que são obrigados a ir para o Orbe Vermelho nessa missão de resgate. Deve ter terrível.

     - Não são obrigados. São voluntários. E lhe digo que a fila dos que esperam essa oportunidade de servir aos menos favorecidos é enorme. 

     - Por que? O salário é bom?

     - Não há salário aqui em Pangeia, Eva. Nem dinheiro. 

     - Mas então… como vocês fazem o comércio, como conseguem o que precisam?

     - Trocamos. Repartimos entre nós. Produzimos o que precisamos e dividimos entre todos os cidadãos, da forma mais justa que conseguimos. Sabemos de nossas necessidades e tentamos saciá-las, todos juntos fraternalmente. 

     - Se é assim, o que leva um cidadão a querer ir para o Orbe Vermelho, sem ganhar um centavo por isso?

     - Minha cara Eva, você precisa abrir seu campo de visão. O dinheiro não é a única recompensa. Neste mundo, aliás, nem é uma alternativa. Temos tantos voluntários porque ir para o Orbe Vermelho é uma forma de acelerar a própria evolução através da caridade e do socorro aos que sofrem. Esta evolução nos habilita a viver num mundo ainda melhor que Pangeia, ao fim de nossa existência atual. 

     - Humm… tem certeza que não são católicos? Isso se parece demais com a promessa de Paraíso se formos bonzinhos. 

     - Não existe céu, segundo o conceito cristão: um lugar onde vivemos em eterna contemplação, ouvindo anjos tocando harpas e sem nada para fazer. Quando subimos na escala evolutiva e conquistamos o direito de moradia em um mundo mais avançado, continuaremos com tarefas por fazer. O trabalho é a ferramenta indispensável nesse processo de melhora pessoal. E nunca se esgota. 

     - Isso me parece mais um castigo eterno do que um prêmio.

     - Porque você tem uma visão ultrapassada de trabalho. Imagina que seja uma pena, uma obrigação muitas vezes sem sentido, bater cartão, cumprir carga horária com tarefas repetitivas e infrutíferas, fazer horas extras. Aqui não é assim. Em Pangeia e outros mundos tão ou mais evoluídos que o nosso, o trabalho é uma bênção que contribui para a harmonia de todo o universo e acelera nosso encontro com a tão desejada paz. E como a paz só pode ser alcançada por todos, é fundamental que ajudemos a todos que pudermos ao longo do caminho. Seu aprendizado, por exemplo, é um trabalho. E você se sente castigada por ter que suportar nossas aulas? 

     - De modo algum! Acho delicioso aprender tanto sobre um mundo tão diferente!

     - Então consegue entender o que estou dizendo. Quando você estiver preparada para executar outras tarefas, perceberá que o trabalho é um presente pelo qual devemos agradecer todos os dias ao Criador. 


6


          Cinco anos se passaram. Eva aprendeu muito. Mas por mais que aprendesse, parecia haver sempre algo mais a descobrir. Anthero a ensinava com paciência e amor. Revelou que poucos séculos depois de Eva ter sido sublimada, a camada de ozônio simplesmente se dissolveu, atacada pela poluição crescente. Os seres humanos que sobreviveram pareciam condenados a uma morte horrível. Tiveram que viver em cavernas e subterrâneos por milênios, expondo-se o mínimo ao sol. Apenas o suficiente para não sucumbir a doenças cardíacas, osteoporose, raquitismo e deficiência de vitamina D. O câncer de pele disparou, ceifando incontáveis vidas. As pesquisas tomaram duas frentes: recuperação do meio ambiente e construção de uma defesa contra a radiação solar. Com muito esforço conseguiram desenvolver um escudo que envolve Pangeia desde então e filtra os raios solares, barrando os UVA e UVB. Toda a agricultura do planeta foi adaptada a uma única missão: reflorestamento. A terra devastada e exaurida por milênios de abusos, finalmente foi tratada com respeito. Não havia nutrientes suficientes no solo para manter plantações de alimentos e florestas, por isso foi preciso escolher, e as florestas eram a escolha óbvia. Sem elas o oxigênio e a água desapareceriam e não haveria chance de sobrevivência. Mas aí permaneceu o problema da alimentação. A fome se espalhou e forçou o exílio de milhões. Séculos se passaram até que os cientistas descobriram uma forma alternativa de alimento: o composto energético. Um produto espantosamente simples e rico em nutrientes, mas insípido. O prazer de uma boa refeição só voltou a ser sentido quando os cidadãos se dedicaram ao desenvolvimento de seus intelectos. Resolvida a questão básica da alimentação e da sobrevivência, era preciso reencontrar o caminho do progresso. Como os corpos humanos tinham mudado muito, enfraquecidos por milhares de anos de provações, a resposta teria que ser encontrada na mente humana. Estudos sobre neurociência foram levados às últimas consequências. Dons como a telepatia evoluíram. Nessa nova situação, a força do pensamento se tornou a resposta para as comunicações, e para um nível de auto-hipnose que permitiu assimilar os compostos energéticos como se tivessem qualquer sabor desejado, bastando para isso “pensar” no gosto que se queria dar à refeição. 

     Essa busca pelo autoconhecimento levou a um interesse renovado pela filosofia, ética, moral e sociologia. O respeito ao outro tornou-se um requisito central para a vida em sociedade. Com o tempo, o conceito de família migrou dos “laços de sangue” para as afinidades espirituais e intelectuais. Os graus de parentesco deixaram de existir à medida que todos passaram a se sentir como uma única família global. Foi nessa terra fértil que surgiu a nova composição política e social: ou todos nos salvamos juntos, ou morremos todos. Daí para a criação da nova legislação universal, foi um passo. Assim nasceu o regulamento chamado “Mandamento do Amor”. Abriu-se então o caminho para todas as conquistas de Pangeia.

     Eva ouvia longas prédicas de Anthero sobre todas essas coisas sem se cansar. Queria sempre mais quando as aulas chegavam ao fim. Em contrapartida, dedicava-se ao estudo dos avanços científicos de Pangeia. Com muito esforço, aprendeu a usar a Sala de Conexão e o disco de transporte - uma espécie de círculo achatado sobre o qual a pessoa se posiciona em pé, e que a leva por toda parte, como se “surfasse” no ar, sem ruído ou emissão de gases. 

    - Como eu pude viver até agora sem um disco de transporte? - perguntou Eva depois de sua primeira volta solitária no aparelho. 

     - Sabia que ia gostar - comentou Anthero, satisfeito. 

    O sol, ironicamente, é a única fonte de energia para todas as maravilhas tecnológicas de Pangeia. A mesma energia solar que quase destruiu a raça humana agora é a sua principal fonte de poder. Fruto de uma nova mentalidade na relação do homem com a natureza. 

     Os mistérios do Universo eram revelados a Eva. Era como abrir os olhos depois de anos no escuro. 

     - Meu Deus, como éramos ignorantes! - exclamava com frequência. 

     - Ainda somos, minha cara, estamos longe de saber tudo! - respondia Anthero, invariavelmente. 

     Um dia, Anthero tornou-se grave e convidou Eva a se sentar. A aluna logo percebeu que o assunto era sério, mais sério do que tudo que tinham conversado até aquele momento.

     - Querida Eva, você avançou numa velocidade impressionante, tanto nas ciências como nos conceitos de nossa filosofia e cultura. Penso que chegou o momento de colocar todo esse conhecimento adquirido a serviço dos outros.

     Eva sentiu-se animada.

     - Estou pronta, meu querido mestre. 

     - Saiba que os desafios que vai enfrentar são maiores do que tudo que já viu no nosso mundo desde que despertou de sua sublimação. 

     - Como você mesmo disse várias vezes, Anthero, uma vida ociosa não tem razão de existir.

     Anthero sentiu-se reconfortado com a postura confiante da aluna.

     - Como você sabe, recebemos regularmente grupos de flagelados vindos do Orbe Vermelho. Aqui eles passam por longos períodos de adaptação em que precisam de assistência constante de enfermeiros. Pois bem. O Reitor, que acompanha esse trabalho de perto, comunicou-se com meu mestre Heráclito e disse acreditar que você pode ajudar nessa tarefa. 

     Eva ficou um pouco assustada pois, a essa altura de sua vida em Pangeia, já tinha a real noção da responsabilidade que aquilo envolvia. Mesmo assim não vacilou.

     - Estou pronta, Anthero. Quando começamos? 

     - Amanhã mesmo. Vou acompanhá-la a um dos nossos Centros de Recuperação onde está o flagelado que você vai atender. Antes, apenas me permita lembrá-la que a tarefa nada tem de fácil, e pode ser bem traumática, principalmente para alguém que está há tão pouco tempo entre nós como você. Por outro lado, sua experiência na Fase da Terra provavelmente ajudará bastante a criar uma empatia com o necessitado. Tenho fé que se sairá bem, e ajudarei no que eu puder. 

     - Prometo me dedicar ao máximo - disse Eva. 



7


     No dia seguinte bem cedo Eva e Anthero chegaram ao Centro de Recuperação da cidade. Eva, que desenvolveu ao longos dos anos uma espécie de simbiose com o mundo à sua volta, notou uma imediata diferença no ambiente. O prédio à sua frente não era de matéria translúcida como os outros que estava acostumada a ver, mas feito com blocos que lembravam os ultrapassados tijolos da Fase da Terra. O semblante de Eva tornou-se sombrio e Anthero percebeu a mudança. 

     - Saiba, Eva, que este prédio foi construído dessa forma justamente para evitar um choque muito grande entre nossos irmãos recém resgatados. Sua transição para nossos avanços tecnológicos e sociais precisa ser gradativa.

     - Eu compreendo. É só… É que este prédio me lembrou de experiências não muito boas de minha antiga vida. 

     - É muito parecido com as construções existentes no Orbe Vermelho, e também com o que existia na arquitetura na Fase da Terra - disse Anthero.

     Uma pesada porta de metal se abriu, rangendo sobre as dobradiças. Anthero e Eva entraram num longo corredor desprovido de qualquer ornamento, escuro e frio. Ao final da passagem, uma mulher os esperava com um sorriso.

     - Graça e Paz, Anthero.

     - Graça e Paz, Viviane. 

     - Esta deve ser Eva, nossa nova ajudante. Graça e Paz.

     - Graça e Paz - respondeu a jovem. 

     - Você verá que o trabalho aqui é desafiador, mas também recompensador. Cada flagelado restituído à vida em comunidade é uma vitória de valor inimaginável para todos nós. 

    - Quero ajudar, Viviane. De todo coração.

     - A motivação é mais que meio caminho andado, minha filha. 

     - Viviane é a diretora deste centro - explicou Anthero. - Ela ficará encarregada de sua instrução nos aspectos diretamente ligados ao trabalho de recuperação dos flagelados. Este é o trabalho mais importante que você já fez em sua vida. Tenho certeza que seu empenho estará à altura. 

     - Torça por mim, Anthero.

     - Sempre, Eva. 

     Depois que Anthero saiu, Viviane conduziu Eva até uma porta no fim do corredor. 

     - Devo prepará-la para o que vai ver atrás desta porta. O homem que é mantido aí chegou a Pangeia há algumas semanas. Ainda traz cicatrizes profundas, no corpo e na mente. Sofreu muito no Orbe Vermelho. Está assustado e, por isso, tornou-se agressivo. Equipes de enfermeiros se revezam nessa tarefa de contenção e tratamento, e é um desses postos que você vai assumir nos turnos para que for escalada. 

     - Como é o nome dele? quis saber Eva.

     - Ele era conhecido com Cosme no Orbe Vermelho. Está pronta, Eva? 

     - Vamos descobrir.

     Viviane abriu a porta. Havia quatro enfermeiros no recinto, um em cada canto da sala, emanando energias positivas em silêncio. Apesar da influência deles, Eva sentiu-se tonta e fraca assim que pisou na sala.

     - Esta sensação é normal, Eva. O flagelado demanda muitos cuidados, e sua presença suga nossa energia. Com o tempo, você vai se adaptar à sensação. 

     Eva ficou assustada mas não quis fraquejar. Não se sentia tão mal desde que despertou do estado de sublimação. Tentou recompor-se e olhou pela primeira vez para o centro da sala, onde havia um leito com um homem. Era Cosme. Eva reparou em sua fisionomia grotesca, sua compleição física corpulenta. Um cheiro forte emanava dele, repleto de impurezas. A atmosfera do ambiente estava pesada e havia pouca luz.

     - Eles não suportam muita claridade - explicou Viviane - No Orbe Vermelho há trevas em quase todo o ciclo de tempo. 

     Eva sentiu que iria desmaiar. Apoiou-se na parede, com vontade de correr para bem longe dali. Mas resistiu. 

   Viviane acenou para o enfermeiro que terminava seu turno, no canto da sala. O homem se dirigiu para a porta, visivelmente cansado. Eva assumiu o lugar do enfermeiro. Era a única mulher naquele grupo de socorristas. Ficou numa posição em que Cosme podia vê-la. Tentando colocar o máximo de carinho na voz, dirigiu-se a ele:

     - Graça e paz, Cosme. Meu nome é Eva, e eu vou ajudar você.

     Eva começou a se concentrar, evocando bons sentimentos e lembranças belas, canalizando as energias dessas memórias em direção ao flagelado. Cosme sentiu aquela influência e assustou-se. Saltou da cama, disposto a atacar. Eva agiu quase instintivamente, usando a mente para conter o agressor. Cosme rugiu e gemeu alto, ainda mais assustado, sem poder se mexer. Aos poucos desistiu de lutar e voltou para a cama. Os olhos de Eva encheram-se de lágrimas por ter que fazer aquilo a um ser humano. Naquele momento, entendeu o que Anthero quis dizer quando garantiu que a técnica de contenção era muito mais dolorosa para quem aplica do que para quem recebe.

     Foi uma longa noite.

     Aquela operação se repetiu por várias semanas, que se tornaram meses, que se tornaram anos. Cosme começou a apresentar resultados, primeiro muito discretos, depois com mais vigor. Graças ao esforço de Eva e seus companheiros, o flagelado livrou-se do medo e deixou de ser violento. Recobrou a habilidade da fala e travou longas conversas com Eva. Contou detalhes terríveis de sua vida, disse que muitos de seus conterrâneos vivem na mais completa ignorância. Negam os fatos científicos, ridicularizam qualquer pensamento mais elevado… Não têm sequer ideia de como o Orbe Vermelho foi ocupado. Para muitos, os habitantes de Pangeia que eventualmente aparecem são alienígenas malignos que têm a missão de abduzir as pessoas e levá-las para outro planeta, onde passariam por experiências como cobaias num laboratório. Cosme abaixou a cabeça, comovido. Eva tocou-lhe no ombro, solidária. 

     - O pior já passou, Cosme. Você está cada vez melhor, aprendendo depressa, fortalecendo-se espiritualmente. Logo estará completamente integrado à nossa vida. 

     - Mas não consigo esquecer meus irmãos que continuam no exílio. Sofrem demais naquele mundo atrasado. Jamais serei feliz enquanto uma única pessoa continuar vivendo naquelas condições.

     - Isso, meu amigo, é a maior prova de que você já é um de nós. 

    


     O portal estava repleto de pessoas ao redor de uma grande espaçonave. Muitos se abraçavam efusivamente, outros conversavam de mãos dadas. O burburinho silenciou quando o Reitor apareceu e se dirigiu à multidão.

     - Graça e Paz, cidadãos de Pangeia. Hoje é um dia muito importante para nós. Mais um grupo de voluntários embarca em direção ao Orbe Vermelho, com a mais nobre das incumbências: ajudar na evolução daquele mundo corrompido e resgatar tantos irmãos flagelados quanto possível. Irmãos voluntários, que o Criador cuide de seus passos. Graça e Paz a todos.

     Eva aproximou-se de Anthero, emocionada.

     - Você não precisava ir. 

     - Sabe que preciso, querida Eva. 

     - Mas eu tenho ainda tanto a aprender!

     - Todos temos o que aprender. Mas você já consegue andar com os próprios pés.

     As lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Eva, que se atirou nos braços de Anthero.

     - Eu nunca vou conseguir agradecer o bastante por tudo que me fez.

     - Então você está com sorte, porque não tem que agradecer coisa alguma.

     Eva sorriu:

     - Essa ironia você aprendeu comigo! - disse.

     - Eu não falei que algum dia eu aprenderia algo com você? - riu Anthero, agradecido por estar abraçado à pupila de forma que ela não pudesse notar seus olhos marejados de lágrimas. 

     - Graça e Paz, Eva.

     - Graça e Paz, Anthero. 

     Minutos depois da despedida a espaçonave decolou silenciosa e ligeira rumo ao Orbe Vermelho. Ali começava mais um ciclo, mais um passo rumo à evolução. Um esforço inspirado no amor - a grande força mantenedora da harmonia no Universo. 


FIM


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