Necrotério

     Fomos cobrir uma ação da polícia civil que resultou na prisão de um bandido famoso, procurado há muito.
     A coletiva de imprensa seria na Central de Polícia, com a presença do delegado regional e de toda a equipe envolvida na operação. 
     Cheguei mais cedo, assim como alguns colegas de outros jornais. Sem ter o que fazer até a hora da entrevista, resolvi dar uma volta pelo conjunto de prédios que forma a central.
     Perto do necrotério comecei a ouvir alguns gemidos. Curioso, fui até lá e notei uma mulher deitada numa das macas funerárias. Ela tinha uma agulha enfiada no braço, ligada a uma bolsa de soro. Olhou para mim de dentro de grandes covas no lugar dos olhos, abriu a boca e só teve forças para soltar outro gemido. 
     Logo outros jornalistas chegaram e viram aquela situação deprimente. Olhei o lugar com mais cuidado e notei outras pessoas deitadas em macas reservadas aos cadáveres. Todas pareciam feridas ou doentes. 
     Quando o delegado regional chegou, a pauta de todos os jornais tinha mudado. Queríamos entender o que era aquilo. Depois de muita pressão, o delegado explicou que todas aquelas pessoas tinham sido encaminhadas para o necrotério por falta de espaço no posto de saúde do bairro. 
     A crise na saúde repercutia na crise da segurança pública. Os pacientes teriam muita sorte se escapassem de uma infecção naquele lugar de higiene precária e sem condições de atender a ninguém. 
     Pensava que já tinha visto de tudo em termos de descaso do poder público com a população. Mas fui surpreendido, mesmo depois de tantos anos de jornalismo diário. 
    A ironia funesta é que, quando morrerem, aqueles miseráveis já estarão um passo além no caminho para o cemitério.
     Nosso jornal foi o único que denunciou o caso. Todos os outros jornalistas, preocupados com suas fontes oficiais na polícia, e querendo manter acesso a informações de primeira mão, se calaram criminosamente. 
     Mesmo assim nossa denúncia deu resultado. Pressionado pelas evidências, o governador exonerou o secretário de saúde. O delegado regional foi "convidado" a antecipar a aposentadoria. E os pacientes do necrotério foram transferidos para unidades de saúde da região.
     A situação deles, porém, não melhorou muito naqueles postos de saúde sem estrutura. 

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