Crime em Descansópolis





A POUSADA NA MONTANHA



     A pousada ficava no caminho para o Horto Florestal, cercada por araucárias gigantescas e árvores frondosas. Ali a temperatura era sempre mais amena do que na estrada a poucos metros, por causa da natureza que formava uma espécie de bolsão térmico, contendo os raios de sol e perfumando tudo com seu orvalho refrescante. 
     O lugar tinha poucos quartos. Um casarão de alvenaria com uma varanda espaçosa, portas e janelas azuis numa fachada branca. Algumas pilastras sustentavam o telhado sobre a varanda e serviam de suporte para ganchos de confortáveis redes. Entre elas um muro baixo era enfeitado com uma variedade de flores coloridas. Um pequeno bebedouro com água atraía beija-flores ligeiros. O sol desenhava no chão padrões aleatórios formados pelas folhas da vegetação exuberante. Nenhum ruído chegava até ali, a não ser o canto melódico dos pássaros ou o lamento cortante de alguma cigarra.
     Nesse cantinho bucólico que em tudo lembra um cartão postal, hóspedes ocasionais tentam encontrar o merecido descanso ou a proximidade com a natureza. São turistas à procura de um pouco de sossego, diferentes dos jovens que adoram o agito do bairro de Capivari durante a temporada de inverno. Entre os atrativos da pousada destaca-se a simpatia de Dona Angelina, a proprietária. Uma viúva já beirando os sessenta anos que nunca quis se casar de novo "basta uma vez para eu aprender com o erro", costuma brincar, lembrando-se da vida difícil que levou com o falecido marido. Um homem agressivo e infiel, que deixou uma sensação de alívio quando morreu, dez anos atrás. Dona Angelina tinha motivos para se tornar uma pessoa amarga, mas o fato é que todos gostam dela. Um pouco acima do peso, bochechas permanentemente rosadas, sorriso fácil, ela é a definição de pessoa cativante. E acabou se tornando um dos patrimônios da pousada para atrair turistas. Alguns costumam se hospedar com regularidade, outros estão ali pela primeira vez, e um dos hóspedes - apenas um - é morador fixo.
     Ele gosta de ficar sentado numa das espreguiçadeiras da varanda, observando a luz da manhã, tentando descobrir quais os pássaros envolvidos nos concertos matinais que acordam os hóspedes. Sempre com um livro nas mãos, de vez em quando com um cobertor sobre os joelhos, invariavelmente com um cachimbo entre os lábios. Os cabelos já estão brancos. A face e as mãos, enrugadas. Os olhos precisam do auxílio de óculos para tornar possível o prazer da leitura. Mas apesar desses sinais externos, este homem guarda uma grande vitalidade. A mente continua ativa e afiada como na juventude. E a força ainda não abandonou os membros vigorosos. 
     - Quer um cafezinho, seu Vicente? - pergunta Angelina, solícita. 
     O homem levanta os olhos do livro e agradece. 
     - Aceito, sim, se não for trabalho.
     - Trabalho nenhum, imagina, acabei de passar. 
     Vicente esboça um sorriso e retoma a leitura. Mas a verdade é que neste dia seus pensamentos não conseguem se fixar no romance que tem nas mãos. Preferem divagar sobre a beleza da vida, a profundidade de sentimentos, o valor das pequenas coisas. Não se considera um filósofo, mas num lugar desses é fácil dar vazão aos devaneios. Foi por isso que ele, podendo morar em qualquer lugar do mundo, escolheu Campos do Jordão como lar. 
     Levemente contrariado, fecha o livro que não conseguia ler. Nos tempos em que trabalhava 10 horas por dia, essa falta de concentração não acontecia. Vicente Matoso, escritor de renome, ganhador de "Jabutis" e de alguns dos mais prestigiados prêmios internacionais, foi considerado um dos principais romancistas paulistas nos anos 70. "Como o tempo passa rápido", pensou, olhando para o verde ofuscante à sua frente. Nos tempos em que trabalhava 10 horas por dia - insiste ele em recordar - a vida se dividia em páginas e mais páginas datilografadas, coquetéis de lançamentos, festas de editoras e viagens pelo país e o mundo. Nada àquela época parecia indicar que o autor de sucesso se tornaria um velho recluso. Vicente não se lembra da última vez que foi ao centro da estância. Também conta nos dedos as visitas que recebeu de velhos colegas de profissão, agentes ou editores. Da família, sabe a quantas anda por ouvir dizer ou uma e outra carta breve da filha mais nova, a única que ainda parece interessada em manter algum vínculo com ele. Letícia sempre foi a mais afetuosa dos cinco filhos. Desde que enviuvou, porém, Vicente tem sentido um certo incômodo ao receber a visita da filha. Ela é tão parecida com Dulce, a mãe! É como uma janela para o além-túmulo; olhar para Letícia tão bonita e cheia de vida é recordar dolorosamente a vida com Dulce. Inconscientemente, Vicente tornou-se turrão, rabugento e desagradável durante as visitas da filha, que acabou se afastando. Hoje os encontros são raros. E rápidos. Para dizer a verdade, o velho escritor pode afirmar que só tem um amigo nos dias atuais. O policial, meio distraído, magro um pouco além do ideal e de cabelos constantemente desarrumados. Um homem que se veste no limite do mau gosto, que se comporta algumas vezes como se estivesse com a cabeça em outro lugar, mas que por trás desse jeito disperso esconde uma inteligência radiante e uma memória fora do comum. "Daria um ótimo personagem para um conto policial", pensa Vicente sempre que se lembra de Mário Russo. 
     O inspetor se declara um fã do trabalho do escritor. Assim que descobriu que Vicente tinha buscado refúgio para a velhice na pousada de Angelina, fez uma visita com uma sacola cheia de livros. "Se importaria de autografar?". Puxou conversa sobre alguns enredos. "O herói de 'Crime na Alameda Santos' é um pouco inverossímil, se me permite dizer, mas o método que utiliza para solucionar o mistério é simplesmente brilhante". 
     Vicente gostou do moço. Ele foi embora prometendo voltar, e cumpriu a promessa. Normalmente chega aos finais de tarde, sempre com alguma das obras dele debaixo do braço, com trechos marcados com caneta ou pedaços de papel, para embasar longas conversas sobre a escolha dos enredos, métodos de produção literária, fontes de pesquisas. Algumas vezes Mário fica para jantar, quando os debates se estendem além do previsto. E a relação fã - ídolo, sem que nenhum dos dois percebesse, foi se tornando uma amizade verdadeira. 
     Vicente ficou sabendo da interessante habilidade do policial, síndrome de Savant, que lhe permite registrar imagens e informações com perfeição. Também soube que faltou muito pouco para Mário se tornar um caso clássico de autismo - talvez daí venha sua expressão por vezes desconectada da realidade e sua aparente falta de concentração. Mas Vicente aprendeu com o tempo que na verdade aqueles são indícios de uma mente ativa trabalhando, registrando detalhes, concentrada ao extremo. Justamente o oposto do que seria natural supor. 
     Quando se sente animado, o passeio preferido desse hóspede recluso é uma breve caminhada até a escadaria de pedra atrás da pousada, que se estende por dezenas de degraus até o centro de uma pequena vila de três ruas entrecortadas por uma estrada, com pequenas casinhas bucólicas espalhadas de forma desordenada e uma deliciosa feira que, todas as quartas-feiras, sábados e domingos, oferece o aconchego de um tachão de pasteis sob um toldo de lona branca. Lá ele se acomoda numa das mesinhas de metal com marca de cerveja estampada no tampo, conversa com vizinhos - se é que se pode chamar de vizinhos os fazendeiros da região, cada um afastado do outro em pelo menos alguns quilômetros - arrisca beber uma cerveja, e claro, comer os pasteis fritos na hora, típicos de feiras. Verdadeiras delícias. 
     Foi numa dessas saídas que conheceu Isadora. 


ISADORA 


     
     A moça logo chamou a atenção do velho escritor. Não é muito alta, corpo bem feito, cabelos longos e negros ondulados, olhos grandes e escuros que refletiam inteligência. Tinha na pele um tom moreno que lembrava a heroína de Jorge Amado. Os lábios eram grossos e bem desenhados e a boca sempre se mostrava pronta para abrir o mais belo sorriso. Uma jovem linda, resumindo, e seu humor era tão atraente quanto sua aparência. 
     Isadora é filha de um lavrador que trabalha numa fazenda de framboesas. Mora na própria fazenda numa antiga casinha de colono com os pais e mais 10 irmãos. Um visitante desavisado logo se perguntaria como era possível tantas pessoas viverem num espaço tão exíguo sem se acotovelarem o tempo todo. Mas a família, embora pobre, encontra seu naco de felicidade em coisas simples como o domingo livre ou o cheiro de terra orvalhada. Os filhos recebem em casa os preceitos básicos para sobreviver, sem grandes arroubos filosóficos, mas com as orientações indispensáveis sobre o que é certo ou errado. Isadora é a quinta filha e nesse contexto familiar se sente feliz. Isso não a impede de intuir que deve existir algo mais a experimentar na vida. Gosta de assistir televisão apenas para ver as atrizes em belos vestidos, os rostos maquiados, as joias ostentadas com elegância. "Seria bom ter tudo isso", pensa calada. 
     O que mais atraiu Vicente foi a vivacidade, a alegria e a inteligência de Isadora. Claro que ele não é tão velho a ponto de neglicenciar a beleza física da moça. Ainda é muito capaz de admirar os atrativos femininos. Pela parte de Isadora, o velho escritor também não passou despercebido. Ela se interessou por aquele senhor de porte elegante, olhos vivos e conversa agradável. A pequena feira da vila acabou se tornando ponto de encontro, onde os dois passavam as horas conversando sobre tudo. Vicente encantava Isadora com suas histórias de viagens pelo mundo, seu conhecimento e sua cultura. Ele era como uma janela para outros universos nunca imaginados pela jovem filha de lavradores. Suas conversas faziam crescer dentro dela o desejo de conhecer o que o mundo oferecia além das cercas da fazenda de framboesas. 
     Com o passar do tempo um sentimento de afeição foi ganhando corpo no coração septuagenário do escritor. Isadora o fazia recordar o quanto a juventude era bela, o quanto a vida podia ser maravilhosa. Sentia-se bem ao lado da moça e, quando ela não estava, as coisas pareciam perder parte de seu brilho. "Que velho idiota", pensava. "A menina podia ser minha neta". Mas esse raciocínio lógico do cérebro não ofuscava o encantamento do coração. Vicente se sentia como o narrador de "Memória de Minhas Putas Tristes", de Marquez:inadequado e ridículo. 
     Sem ninguém mais com quem se abrir, Vicente tomou coragem e resolveu compartilhar seus sentimentos com aquele policial meio desleixado no vestir, que considerava um verdadeiro amigo. Uma tarde, quando Mário o visitou para uma partida de xadrez, resolveu entabular a delicada conversa.
     - Acho que estou gostando de uma moça - fuzilou Vicente. Ficou esperando a reação de Mário, mas ele apenas tirou os olhos do tabuleiro, soltou o peão que estava prestes a capturar um cavalo de Vicente, e olhou para o velho amigo com expressão interessada. 
     - Ela mora numa fazenda aqui da região - prosseguiu. - É uma menina muito linda, inteligente e divertida. E também muito nova...
     Vicente perscrutou o rosto do policial, tentando encontrar algum sinal de desaprovação, mas o outro permanecia impassível como quando interrogava algum suspeito na delegacia. 
     - Sei que sou um velho que caminha a passos largos pro último capítulo da vida. Sei que ela tem idade pra ser minha neta. Sei o que a sociedade acha desse tipo de relação...
     - Você faz questão de parecer mais velho do que realmente é - interrompeu Mário. - Ainda está muito forte e tem uma das mentes mais lúcidas que eu conheço. 
     Vicente olhou para o amigo, agradecido. 
     - Mas o que uma moça tão encantadora poderia querer de um velho como eu? - perguntou.
     - Bem, isso cabe a ela julgar, não é?
     - Jamais vou contar a ela sobre meus sentimentos. Só por pena alguém como ela aceitaria a companhia de um sujeito como eu.
     - Olhe, Vicente, não sou o cara mais romântico do mundo. Pelo contrário, minha esposa poderá confirmar a você que estou muito mais para Heathcliff do que para o jovem Werther... mas não sou tão cínico como você.
     Vicente explodiu numa gargalhada.
     - Estou mais jovem desde que começamos a ter essas conversas, meu amigo. 
     Mário voltou os olhos para o tabuleiro novamente, e disse:
     - Converse com a moça, Vicente. Ela não te odeia, não é? Pelo que me diz vocês passam muito tempo juntos. Garanto que ela não vai te estapear como se você fosse um velho tarado. - Mário fez um movimento com o bispo - A essa altura da vida você não pode mais se dar ao luxo de perder tempo.
     Vicente ouviu o conselho com um sorriso nos lábios.
     - Xeque-mate - disse o inspetor. 




OS FILHOS PRÓDIGOS À CASA TORNAM 


    Algumas semanas se passaram. Vicente falou com Isadora, abriu o coração. Para sua própria surpresa, não foi rejeitado. Não ataram um namoro imediato, mas a moça pediu tempo para pensar. E durante esse tempo, os dois ficaram ainda mais próximos. Adicionaram aos encontros na feira alguns passeios pelas trilhas que cortam o bosque desde a pousada de Vicente até a vila de Descansópolis. Isadora, muito religiosa, mais de uma vez arrastou o velho ladeira acima até a pequena igreja da comunidade. Ele, esbaforido e suado da caminhada forçada, ficava sentado num banco dos fundos enquanto a jovem se ajoelhava perto do altar e se perdia em orações. Vicente nunca acreditou em Deus, que considera um mito criado para consolar os fracos, mas aquela piedade de Isadora encantava ainda mais o escritor apaixonado. 
     Um dia, a longa ausência da filha Letícia foi quebrada numa visita surpresa. Vicente, com o coração renovado, ficou radiante. Se desfez em agrados e carinhos para a filha predileta. Estava tão contente que acabou falando de Isadora para ela. A filha, feliz com a reaproximação do pai, não teve coragem de jogar-lhe na cara os pensamentos que a invadiram naquele momento. Mas sua expressão deixou claro o que pensava daquela história. Os dois se despediram com uma gentileza fria, mas cordial.
     Letícia comentou com os irmãos o que estava acontecendo. Eles, apesar de afastados do pai há muitos anos, ficaram preocupados. Não exatamente com a saúde emocional do velho, mas com seus próprios interesses. Heitor, o mais velho, expressou o pensamento de todos: 
     - Sabemos bem o que um rabo de saia pode fazer com a cabeça de um homem. Ainda mais quando se trata de um velho babão.
     - Ele não tem nada de babão. Se o visitasse de vez em quando saberia - respondeu Letícia, ríspida. 
     - Essa golpistazinha acaba levando tudo que é nosso - declarou Magnólia, a segunda mais velha. Gertrudes e Gumercindo, os dois filhos do meio de Vicente, apenas concordaram abanando as cabeças em assentimento. 
     - Acho que a gente deve aparecer lá na pousada, ficar mais próximo do pai. Isso é sinal de solidão - comentou Heitor. 
     Letícia condenou silenciosamente a verdadeira intenção daquela ideia, mas se era para reaproximar os irmãos do pai, talvez o fim justificasse os meios. Concordou com a proposta. 
     Mais tarde, em casa, Magnólia contou tudo para o marido Getulino. Ele ficou com as gordas bochechas vermelhas de excitação, ergueu o corpanzil da poltrona onde lia a seção de esportes do jornal, e exclamou em alta voz:
     - Esse velho pirou de vez! Temos que fazer alguma coisa urgente, Magnólia. Ele é bem capaz de deixar tudo para essa menina e nos largar a ver navios.
     - Imagina, Gê. Ele não teria coragem... 
     - Larga de ser tonta, mulher! Ainda bem que eu estou aqui para defender seus interesses. Se deixasse por sua conta estaríamos perdidos.
     - Mas o que se pode fazer, Gê? - perguntou a esposa, tímida.
     - Sempre há o que fazer, Mag. Deixa comigo - respondeu o marido.
     Magnólia ficou curiosa, mas preferiu não estender aquela conversa desagradável. 
     Na casa de Gertrudes a cena foi bem diferente. Ao saber da nova aventura do sogro, Demóstenes primeiro ficou com uma expressão sombria, matutando em silêncio por alguns segundos. Depois limitou-se a sorrir com ironia e comentar:
     - O sogrão ainda dá no couro, então! Melhor pra ele.
     - Deminho!! - bradou Gertrudes, indignada.
     - O que tem isso? Como você acha que nasceu, minha querida? Do broto de bambu? Pais também fazem sexo, não sei se te contaram. 
     Quando Gertrudes saiu da sala para cuidar do jantar, Demóstenes ficou um minuto ou dois parado, contemplando a vista da janela e pensando naquela novidade. "Sim senhor, o velho Vicente ainda tem umas cartas na manga". 

     O fim de semana seguinte foi bastante festivo na pousada. Filhos com os respectivos cônjuges encheram a varanda com uma conversa ruidosa, muitos risos, tapinhas nas costas do sogro, beijos afetuosos no pai. Vicente se divertiu bastante, mas nem por um momento se deixou enganar por aquela súbita onda de afeto. Entendeu imediatamente que a notícia do seu pequeno flerte com uma mulher bem mais nova tinha se espalhado entre os parentes. Não se conteve e colocou todas as cartas na mesa:
    - Sei muito bem por que, de uma hora para a outra, vocês resolveram quebrar a longa ausência e me visitar todos juntos, saudosos e carinhosos.
    Um silêncio constrangedor se formou.
    - Antes que continuem se torturando em dúvidas, vou responder a pergunta que não tiveram coragem de formular. Sim, eu encontrei uma moça que me interessa bastante. Sim, estamos nos encontrando embora não possa chamar a isso de namoro - por enquanto, mas tenho esperança de que nosso relacionamento se torne mais sério em breve. E se estão preocupados com a possibilidade de minha pequena fortuna ir parar nas mãos de uma estranha, quero tranquilizá-los. Tenho um testamento pronto em que todos estão contemplados.
     - Que horror, papai! - protestou Magnólia, sem muita convicção.
     - Pare com o teatro, Magnólia! No fundo todos sabemos que é disso que se trata. Pois bem. O destino de minha herança já está definido. Embora, é claro, nada me impeça de fazer uma ou outra mudança antes de bater as botas... 
     Os olhos de todos se arregalaram assustados, menos os de Letícia, que entendeu a pirraça que o pai aplicava nos irmãos. Sorriu, divertida. E Vicente saboreou o doce prazer de tirar um pouco do sossego dos filhos. 
      Desde então as visitas ficaram bem mais frequentes. Nos fins de semana seguintes Vicente recebeu alternadamente a atenção de cada um dos cinco filhos, algumas vezes acompanhados dos cônjuges. Isadora acabou sendo apresentada a todos eles, informalmente. E todos reagiram com a mesma antipatia, exceto Letícia e o genro Demóstenes, que chegou até a comentar com o sogro a respeito da beleza da moça. 
     - Um pedaço de mal caminho, Vicente - disse.
     - Olha o respeito, Demóstenes - respondeu o escritor, divertido. 
     Num domingo de sol e céu azul, combinaram uma rodada de cervejas na feirinha da vila. Letícia compareceu. Gertrudes e Demóstenes, Heitor, Gumercindo com a mulher Raíssa, Magnólia e Getulino também apareceram. Getulino era o mais sombrio de todos. Entre um pastel e outro que agarrava com os dedos rechonchudos, jogava um olhar azedo para a sorridente Isadora que parecia ignorar a animosidade em redor dela. Também mirava a expressão alegre do sogro. "Que idiota, não percebe que está caindo num golpe", pensou. 
     Seguiram-se cervejas, porções de azeitona e queijo, pasteis fritos na hora. O clima sombrio foi amolecendo, os presentes começaram a se soltar, o bate-papo foi ficando mais animado à medida que as horas avançavam. Os copos se erguiam num ritmo alegre. De repente uma garrafa de Chandon apareceu nas mãos de Getulino. Taças foram rapidamente distribuídas entre os integrantes da família.
    - Um brinde ao nosso querido Vicente, que tenha vida longa e feliz. E também à jovem Isadora, que está contribuindo para que essa felicidade seja plena. 
     Houve um pouco de constrangimento apesar do efeito apaziguador do álcool. Mas todos brindaram. As taças eram rapidamente esvaziadas e enchidas. Logo a garrafa secou e foi substituída por outra. As vozes se tornavam mais altas, as falas mais incompreensíveis à medida que a bebedeira avançava. A festa prometia entrar noite adentro. 



UMA TRAGÉDIA  


     Em casa ao lado de Suely, Mário dormia um sono agitado como era seu costume, quando ouviu o telefone tocar. Era Vicente. Parecia preocupado.
     - Mário, aconteceu uma coisa aqui na vila. Um homem está morto. Por favor venha assim que puder. 
     - Estou a caminho, disse o investigador, levantando-se de um pulo. 
    - O que foi, Mário?
    - Trabalho, Su. Volte a dormir. 
    Na barraca de pasteis da feira, entre garrafas de cerveja e copos vazios, uma pequena multidão se aglutinava. Dois paramédicos chamados pela pasteleira conversavam num canto. No centro da barraca, um corpo estirado no chão, sem vida. Mário se aproximou de Vicente.
     - O que aconteceu?
     - Não sei, estávamos todos alegres bebendo e comendo, quando de repente esse homem começou a engasgar, levou a mão ao peito e caiu. Não se mexeu mais. Tentei fazer uma massagem cardíaca enquanto chamavam socorro, mas quando a ambulância chegou ele já estava morto. 
     - Conhecia o defunto, Vicente?
     - Um pouco. Tem um pequeno sítio com umas vacas, vende leite fresco numa caminhonete que percorre a região. Teodomiro, o nome. Um vizinho simpático, com quem troquei algumas palavras vez ou outra. 
     A conversa seguinte foi com os paramédicos. 
     - A autópsia vai ter que determinar com certeza, mas acho que a causa da morte foi um ataque cardíaco - disse o socorrista-chefe. 
     A mulher do morto chegou logo, chorando desesperada. Depois de longos minutos, mais calma, foi ouvida por Mário. 
     - Ele tinha uma saúde de touro. Nunca precisou ir "no" médico. Não entra na minha cabeça morrer assim sem mais nem menos - e voltou a chorar descontrolada. 
     Mário pediu para usar o telefone da casa da dona da barraca de pasteis, ali perto.  Ligou para Julia, que estava de plantão na delegacia.  
     -Preciso de um perito, Julia. Venha com ele você também para me ajudar aqui nos depoimentos. Deixe o Brito cuidando da delegacia. 
     Julia chegou uma hora depois, no carro do IML, acompanhada de um perito. 
     Ele examinou o corpo e confirmou a impressão do socorrista: ataque cardíaco. 
     - Fatalidade, eu diria. 
     Mário parou um pouco para pensar. 
     - Quero um exame necroscópico completo. Inclua intoxicação por agentes químicos, por favor...
     - Algum motivo para acreditar que não tenha sido morte natural? - quis saber o legista. 
     - Apenas o depoimento da mulher do defunto. Ela garante que a saúde dele era de ferro.
     - Já vi jogador de futebol cair durinho no meio do gramado, de uma hora pra outra - rebateu o perito.
     - De qualquer forma, quero descartar qualquer outra possibilidade - e Mário encerrou a conversa. 
     A pedido do detetive, as taças e garrafas de vinho foram recolhidas, assim como os copos vazios em que todos tinham bebido cerveja. 
     - Peguei endereços e telefones de todos os presentes, Mário - disse Julia. - Parece que hoje o lugar estava bem mais cheio que de costume por causa da presença da família do Vicente Matoso. 
     - Isso também não é costumeiro - disse Mário. - Eles nunca aparecem. Mas de umas semanas para cá, começaram a ser muito presentes. Coincide com o início de uma nova amizade de Vicente.
     _ Nova amizade? - Julia ficou curiosa.
     Mário acenou com a cabeça na direção de Isadora, que estava perto de Vicente, com olhos assustados e expressão tensa. 
     - Acho que não há mais o que fazer por aqui agora. Vamos esperar o resultado dos exames da perícia. 
     Mário deu uma carona para Julia até a casa dela.
     - Por que pediu exames tão detalhados, Mário? Espera encontrar alguma coisa?
     O cheiro dela estava fresco e agradável. Aquele mesmo perfume de sempre. Mário se esforçou para não perder a concentração.
     - Você me conhece, Julia. Não consigo conviver com a dúvida, por menor que seja a possibilidade de algo errado. Depois da perícia jogo uma pá de cal nessa história. 
     - Você é muito meticuloso...
     - Obrigado, acho...
     - Não é um elogio nem uma crítica - disse Julia - apenas uma constatação. 
     Silêncio.
     - Você é assim em casa também, ou só no trabalho?
     - Assim como? 
     - Meticuloso em tudo que faz!
     - Ah, sim... acho que você pode dizer que sim. 
     - Há vantagens nesse comportamento - comentou Júlia.
     - Por exemplo?
     - Não deixa as coisas pela metade. 
     O carro entrou pela rua de Júlia e parou na frente da casa. 
     - Obrigado pela carona. Quer entrar para um café?
     - Acho melhor não. Se bem conheço a Suely, ela está acordada esperando notícias. 
     - Claro... boa noite então.
     Mário esperou a moça entrar antes de seguir para casa. Pelo caminho, tentou chegar a uma conclusão sobre se a bela escrivã tinha flertado com ele ou apenas conversado despretensiosamente. Ele nunca foi muito perspicaz nesse tipo de assunto.
     No dia seguinte o detetive manteve a rotina de uma segunda-feira sem grandes variações. O movimento estava fraco e a cidade mostrava sua costumeira face tranquila, bucólica e acolhedora. Tudo parecia perfeito naquele dia de baixa temperatura, céu azul profundo e luz radiante. Essa calmaria toda foi bruscamente rompida pelo telefonema do perito criminal.
     - Saiu o resultado parcial da autópsia do fazendeiro - disse. - Achei melhor informar o senhor antes mesmo de concluir o exame. 
     - Algo anormal - deduziu Mário.
     - Encontramos cianeto de potássio no sangue do morto. Ele foi envenenado. 
     Mário pensou por um segundo.
     - Seja detalhista com os copos e taças que recolhemos da barraca - pediu. 
     Aquela era mesmo uma notícia inesperada e bombástica. Um crime havia sido cometido. Mas por quê e, acima de tudo, por quem?
     - Julia, vamos ter que colher depoimentos detalhados de todos que estavam na barraca de pasteis da feira ontem. O fazendeiro foi envenenado.
     - Não sei por quê ainda me surpreendo com os resultados das suas intuições - disse a escrivã. 
     Os dois entraram na viatura e seguiram no rumo de Descansópolis. 
     - Das duas uma - disse Mário enquanto dirigia - ou o assassino é um grande amador, ou não esperava uma investigação tão detalhada do corpo de sua vítima. O veneno apareceu logo no início da autopsia.
     - Acredito na  primeira opção. Afinal, quem desejaria a morte de um simples criador de vacas? Não deve ser nenhum gênio do crime - raciocinou Júlia.
     - É o que temos que descobrir: se alguém tem um motivo. Devassar a vida da vítima e dos que são próximos a ela.
     A fazenda de Teodomiro Gonçalves ficava no fim de uma estrada de terra que saía à esquerda da rodovia do Horto Florestal. Eram cinco quilômetros de chão batido e costelas-de-vaca que exigiam uma velocidade reduzida da viatura.  
     Quando Mário e Julia chegaram o local estava cheio de vizinhos tentando consolar a viúva, dona Zulmira. A viatura foi estacionada perto da casa. Os policiais desceram e se apresentaram. Um homem alto usando chapéu de couro e botas longas parecia inconsolável. Era o irmão da vítima.
     - Me chamo João Gonçalves - ele se apresentou.
     - Sei do momento delicado, senhor João, mas entenda que precisamos agir rápido pra descobrir o que aconteceu. O que pode nos contar da vítima? 
     - Teodomiro era um homem bom, doutor. Nunca fez mal a ninguém. Nasceu e cresceu aqui na fazenda. Sua vida era acordar 4 da manhã pra ordenhar as vacas, trabalhar até o fim da tarde, ir pra cama cedo e começar tudo de novo. Era querido de todo mundo. Olha quanta gente tá aqui pra consolar minha cunhada. 
     - Nenhum desafeto? Nenhuma desavença? Na roça é comum alguma diferença com vizinhos sobre demarcação de terra, animais de um que destroem a lavoura de outro...
     João pensou um pouco. 
     - Teodomiro teve um arranca-rabo com uns moleques que invadiam a fazenda pra roubar goiaba do pomar. Ele não ligava que pegassem, mas os meninos destruíam a cerca pra invadir, espantavam as galinhas, faziam uma arruaça. Ele deu uma dura nos pestinhas. O pai de um deles não gostou, veio aqui reclamar. João ficou irritado, pediu que ele cuidasse do filho. Os dois acabaram batendo boca feio, trocaram uns sopapos e o pai do moleque levou a pior.  Foi embora com o olho roxo e gritando que matava Teodomiro. Ele não levou a sério. Tocou a vida. 
    - Quando foi isso?
    - Semana passada. 
    - Sabe se eles se viram de novo? 
    - Acho que não mas não tenho certeza. Também as crianças pararam de vir aqui roubar fruta. 
     - Quem é esse homem que brigou com Teodomiro?
     - Juca Mabel, da farmácia.
     - Da farmácia? 
     - Ele tem uma farmácia na vila. 
     - Você o conhece?
     - De ouvir falar - respondeu João. - Alguns boatos de clientes mal atendidos, brigas com outros comerciantes do vilarejo, essas coisas. Parece que o sujeito tem pavio curto. 
     Mário tomou nota das informações. 
     Júlia se aproximou com expressão desapontada. 
     - Conversei com alguns vizinhos... ninguém ajudou muito. Parece apenas que o falecido tinha dívidas, mas isso não é novidade nesse meio. A maioria dos produtores rurais daqui tem financiamentos com o governo e lutam pra honrar as parcelas, mas isso depende da produção que nem sempre vem como o esperado. 
     Julia olhou para a casa.
     - Coitada da viúva. Vai passar por maus bocados pra manter a fazenda e os quatro filhos pequenos. Talvez parentes e amigos ajudem, o povo aqui é muito solidário.
     - Nós também vamos ajudar, descobrindo quem fez isso com o marido dela - disse Mário, convicto.- Vamos para a vila.
     A farmácia estava aberta. Mário pediu que Julia esperasse no carro. Antes ir até lá, tirou o paletó e a gravata, abriu um botão da camisa, deixou o coldre com o revólver no carro. Abordou um passante na calçada, conversou um pouco com ele, estendeu-lhe algum dinheiro e ficou com o chapéu do estranho em troca. Ao dirigir-se à farmácia assumiu um jeito de andar totalmente novo, meio desengonçado, como se fosse alguém muito acostumado a andar a cavalo - tudo isso sob o olhar atônito de Júlia, dentro da viatura. 
     Juca Mabel estava atendendo um cliente. Mário aproveitou para observá-lo atentamente. Um homem de estatura mediana, a cabeça mal coberta pelos cabelos que restaram, lisos e escorridos de forma a tentar inutilmente esconder a careca. Juca usa um bigode farto. O jaleco de farmacêutico tem mangas curtas que revelam braços fortes e peludos. As mãos são grandes, dedos nodosos enfeitados com anéis e uma aliança. A voz é firme, os modos são meio grosseiros, como quem está sempre impaciente. 
     - Aqui está, dona Amélia. Bom dia. Em que posso ajudar? - disse Juca, virando-se repentinamente para Mário. 
     O policial ergueu o chapéu em cumprimento.
     - O sinhô é "farmacêuco"? - perguntou Mário, assumindo um sotaque caipira carregado e uma postura simplória.
     - Sim, senhor, farmacêutico, sim. De que precisa? - respondeu, impaciente.
     - Faiz remédio aqui na sua farmácia? 
     - Só para alguns clientes que me pedem receitas especiais. A maior parte das vendas é de remédios industrializados mesmo. Precisa aviar alguma receita?
     - Num sei o qui qui é isso di aviá não, mais tô precisado de um remédio sim. Na cidade as farmácia qui faiz isso é tudo cara dimais e eu num dô conta di pagá não. Intão arresorvi vim aqui vê si o sinhô faiz o serviço mais im conta. Posso oiá o lugar onde o sinhô faiz o remédio? Sabe como é, só pra ter uma ideia
     Juca deu sinais evidentes de descontentamento. Falou bruscamente:
     - O laboratório é um lugar controlado, asséptico, descontaminado. Sua entrada lá certamente estragaria todos os ingredientes. 
     - Entendi - respondeu o policial, sem perder a calma. - Mas o lugar tem tudo certinho, sinhô...
    - Juca.
     - Sinhô Juca, o seu "laboratóro" tem muitos ingredienti?
     - Todos os necessários. 
     - Humm, qui bão, qui bão. I veneno, faiz tamém?
     O farmacêutico estranhou a pergunta. 
     - Por que quer saber isso? - perguntou.
     - Uai, curiosidade! Faiz veneno pra matá rato? Veneno daqueis qui a gente vê nus filme? Como chama? Sineto? Soneto?
     - Cianeto, você quis dizer? Não produzo aqui, isso exige licenças especiais, mas eu teria como conseguir, com relativa facilidade. Só que nunca ninguém me pediu isso.
     Imediatamente Mário retirou o chapéu, endireitou a postura e retomou o tom de voz normal.
     - Obrigado pela sua atenção, seu Juca. Boa tarde.
     Saiu jogando o chapéu no balcão, deixando atrás de si um homem completamente surpreso com aquela ruidosa transformação do suposto cliente.
     No carro, Júlia quis saber que história foi aquela.
     - Pista falsa, Julia. Achei que o farmacêutico poderia ser suspeito do crime. Ele teve um desentendimento com a vítima semana passada, e poderia preparar o veneno num laboratório que mantém nos fundos da farmácia, ou comprá-lo pronto facilmente.
     - E por que descartou essa hipótese - perguntou a moça. 
     - Porque ele admitiu muito rápido que tem a estrutura necessária para conseguir o veneno. Ora, se fosse culpado, jamais admitiria isso.
     Mário colocou de volta o coldre com o 38 e ficou pensativo por alguns instantes.
     - E agora? - perguntou a escrivã.
     - É justamente o que estou me perguntando nesse momento, Júlia. 
     - A família da vítima seria um caminho natural pra investigar, quase um cliché de romance policial...
     - Claro, Júlia, o problema é que algo me diz que aquele peão de fazenda, o João Gonçalves, estava verdadeiramente arrasado com a morte do irmão. E ele não tem perfil de envenenador.
     - Acho que podemos dizer o mesmo da viúva. Dona Zulmira se desfazia em lágrimas. Senti sinceridade - comentou Júlia. 
     - A verdade é que o caso todo está fora de ordem. Não faz nenhum sentido. Um homem querido por todos, de vida simples, sem grandes posses, morre envenenado durante uma celebraçãozinha familiar e informal de um escritor famoso. A suposição de uma desavença já se mostrou infrutífera. Diante disso, existem duas hipóteses para o caso.
     - Que seriam...? - Júlia não se arriscou a adivinhar.
     - Primeira: alguém que já ouvimos ou conhecemos está mentindo e é um fingidor super habilidoso. Ou, segunda: nós estamos na trilha errada. 
     - Trilha errada? - perguntou a moça.
     - Estamos olhando para o lado errado. Acho isso mais provável. E o que fazemos quando nos perdemos numa trilha? Subimos uma colina pra tentar encontrar o caminho certo olhando de cima. Uma visão mais ampla e sem preconceitos, é o que precisamos agora. 
     - O que quer dizer com isso, Mário?
     - Suponhamos que Teodomiro não fosse o alvo do envenenador. Pelo que ouvimos até agora dos presentes, a reunião estava animada. Teodomiro foi convidado, como outros, a participar da alegria da família de Vicente Matoso, que se reuniu para uma tarde agradável regada a cerveja. Já viu o que acontece nesses encontros, Júlia?
     - O pessoal logo fica animado.
     -... e logo relaxa totalmente, um bebe no copo do outro, uma bagunça. Suponha que o veneno tenha sido colocado no copo do verdadeiro alvo do assassino mas, no meio da confusão, Teodomiro tenha pegado o copo errado. 
     - Conan Doyle adoraria essa sua teoria - brincou Júlia. 
     - A beleza da especulação é que ela pode ser feita impunemente. Estamos só especulando. 
     - Mais triste ainda, morrer por engano. 
     - Vamos esperar o exame das garrafas de vinho, copos e taças que mandei pra perícia. 
     - Confesso que quando você mandou recolher aquele material não entendi nada - disse Júlia. - Mas essa precaução se mostrou importante quando o exame indicou envenenamento. Você esteve um passo adiante na história. 
     - Talvez. O resultado do exame dirá. Por falar nisso, que horas são?
     - Quase meio-dia - respondeu Júlia.
     - Vamos almoçar por aqui mesmo. Eu pago.
     - Aceito - Júlia sorriu.
     Escolheram um bonito restaurante de fachada rústica e varanda com mesas nos fundos do vilarejo. Da varanda os clientes podiam observar a mata que se descortinava, fechada e brilhante, limitando a vila como um muro natural. Um pequeno córrego passava ao lado do restaurante, enchendo o ar de um marulho aconchegante. Júlia ficou observando a paisagem enquanto esperavam o pedido.
     - Aqui é um lugar tão lindo - comentou - Não combina em nada com um assassinato.
     - Na verdade - respondeu Mário, pegando um dos pãezinhos do couvert -  já vi crimes cometidos em lugares ainda mais bonitos. Nossa bela Campos do Jordão é uma dama de linda aparência, mas que esconde lá suas maldades.
     A comida chegou. A refeição foi leve e agradável, assim como a conversa dos dois colegas, que se manteve longe de questões profissionais. Quando terminaram os cafés, Mário disse:
     - Vamos fazer uma visita ao Vicente Matoso. Aproveitamos pra trocar algumas ideias com ele sobre o que aconteceu.
     Os policiais voltaram para a viatura e subiram pela pequena avenida até o outro lado da vila, onde se embrenharam numa estreita rua de terra que seguia morro acima. A paisagem se tornava mais fechada e verdejante à medida que avançavam. O perfume de flores do campo e ervas da estação preenchia o espaço, como um abraço. Era embriagador. Os dois seguiam em silêncio, como se quisessem manter a magia daquele caminho paradisíaco. 
     Depois de uns três quilômetros avistaram a pousada de dona Angelina. Vicente estava na varanda, acompanhado de Isadora. Os dois conversavam animadamente. Os policiais se aproximaram.
     - Boa tarde, Vicente. Lembra-se de Júlia, ela esteve ontem na feira.
     - Muito prazer, Júlia. Bem-vindo, Mário. Estava me perguntando quando você apareceria. Vocês devem se lembrar de Isadora, ela estava na feira também. 
     - Lembro sim. Podemos conversar um pouco? - perguntou o detetive.
     - Claro.
     - Júlia, por que não aproveita para conhecer o jardim da pousada junto com Isadora? - o olhar de Mário deixou claro que aquilo não era apenas uma sugestão. A escrivã entendeu a proposta. 
     - Ótima ideia. Vamos lá, Júlia? Deixamos os dois com a conversa chata. 
     - Ok. - disse a moça.
     Quando ficaram sozinhos, Mário contou ao amigo escritor o que tinha acontecido até ali. 
     - Puxa, parece a sinopse de um dos meus livros - comentou Vicente. 
     - Estou num beco sem saída, Vicente. O que me leva a crer que a história está toda errada. Acho que a vítima morreu por engano. 
     - Não é um pouco cedo para pensar assim, Mário? Você nem tem todos os detalhes da perícia ainda. 
     - É só uma intuição, uma hipótese. Não seria o primeiro caso que se apresenta totalmente sem indícios no começo, e depois se revela mais simples do que o esperado. Me fale um pouco da sua família. De repente eles resolveram frequentar sua vida de novo.
     - Coincidência ou não, detetive, isso aconteceu depois que contei a Letícia sobre Isadora. Ela contou aos irmãos, que contaram aos maridos e esposa. E então, como num passe de mágica, todos resolveram se preocupar com a minha solidão.
     - Muito conveniente. Desculpe a franqueza. 
     - Não se desculpe, eu penso exatamente como você. E sabe o que mais? Resolvi aproveitar. Não posso exigir que as pessoas mudem de temperamento, mas posso me aproveitar do que me oferecem.
     - Um jeito prático de ver a questão - comentou o policial.
     - Estou convencido que é o melhor jeito. 
     - E quanto a Isadora? Estão se dando bem, não é?
     - Muito. Ela ainda não se decidiu a ficar comigo. Entendo a relutância.
     - Pare com isso, Vicente. Primeiro achou que seria despachado; isso não aconteceu. Agora insiste na ideia da rejeição. Sugiro que use o mesmo método que aplicou nos filhos: aproveite. 
     Vicente sorriu, concordando com o amigo. 
     Enquanto isso, Júlia tentava obter mais informações sobre a moça que encantou o escritor. Achou Isadora realmente bonita, uma beleza acima da média. E parecia ser inteligente também. O tipo de pessoa magnética, que não faz força para atrair a atenção - principalmente dos homens. Se não vivesse num lugar tão bucólico, certamente seria muito popular nas altas rodas. Era fácil entender a predileção de Vicente por ela.
     Júlia começou perguntando sobre a família dela.
     - Moro com meus pais e meus dez irmãos. Trabalhamos todos numa fazenda de framboesas aqui perto. 
     - Vocês estudam?
     - Todos nós. Os mais velhos terminaram o colegial. Eu inclusive. Meus irmãos mais novos estão todos na escola. Meus pais só estudaram até a quarta série, meu pai só sabe escrever o nome e fazer contas de mais e de menos. Mas eles fizeram questão de dar estudo para os filhos.
     - Uma boa medida - concordou Júlia. - E o Vicente? Como é sua relação com ele?
     A moça ficou um pouco ruborizada. 
     - Não precisa responder...
     - Não, tudo bem! - decidiu Isadora - Conheço Vicente há pouco tempo. Começamos a conversar com frequência. Gosto da conversa dele. Sabe tanta coisa! Conhece lugares que eu só vi na televisão. E me conta como é. Ele tem um jeito pra contar as histórias... parece que eu estou lá com ele, vivendo as coisas que ele fala. 
     - Não é à toa que ele é um escritor premiado - comentou Júlia.
     - Eu me sinto... grata! Acho que é isso. Me sinto grata pela atenção dele. 
     - Só isso?
     Isadora ruborizou de novo, mas continuou falando.
     - Me acostumei a ver o Vicente, conversar com ele, passear pelos bosques aqui... É uma pessoa agradável, é ótimo passar o tempo  com ele. Quando estou com ele, esqueço de tudo. Da dureza da vida em casa, do trabalho, tudo parece leve e bonito. 
     Júlia sorriu:
     - Está falando como uma pessoa apaixonada...
     - Mas não dá! Olha pra gente! Imagina a gente formando um casal? Ele é muito mais velho que eu, podia ser meu avô. O que as pessoas iam dizer?
     Ah, a velha preocupação com a opinião dos outros. "A maior pedra no caminho da história da humanidade", pensou Júlia. Mas resolveu aproveitar o gancho para ir direto ao ponto:
     - O que seus pais acham dessa sua amizade?
     - Ah, meu pai nem imagina que o Vicente tem algum interesse além da amizade em mim. Se imaginar, não sei o que poderia fazer. Ele é ótimo, sabe, mas é um pai à moda antiga. Imagina o casamento ideal, todo certinho, pra filha. 
     Júlia achou aquela revelação interessante. Prosseguiu:
     - E sua mãe, o que pensa disso?
     - Quando me abri com ela, me disse pra tomar cuidado, que tem muito homem interessado em se aproveitar de moça boba e depois abandonar. Principalmente os velhos tarados... Mas eu já sei que o Vicente não é assim. Tenho certeza. 
     - Parece que não vai ser fácil lidar com seus pais se vocês se acertarem, né?
     - Justamente por isso não vai acontecer. Não tive coragem ainda de dizer pro Vicente, mas a gente vai ser só amigo. 
     - Ora, por que não diz logo? Ele sabe se defender, é um homem maduro. 
     - Não tenho coragem de magoá-lo. 
     - Olha, Isadora, você me parece ser uma pessoa legal. Mas vai por mim, adiar essa conversa só vai piorar a situação. Não tenho nada a ver com isso, mas é o conselho que te dou.
     - Obrigada Júlia. Você também é legal. 
     - Vamos ver o que aqueles dois estão aprontado? - sugeriu a policial.
     Os quatro tomaram o café da tarde juntos. Conversaram um pouco sobre literatura - assunto preferido de Mário e Vicente, e que despertava uma viva curiosidade em Isadora. Só se separaram quando a tarde já dava seus últimos suspiros. 
     Na viatura, de volta para a cidade, Júlia colocou o inspetor a par da conversa que teve com Isadora. 
     - Me chamou a atenção o fato do pai dela não saber de nada. Isadora tem medo da reação dele, caso saiba das intenções românticas de Vicente para com ela. Isso me fez pensar... será que ele não sabe de nada mesmo? Afinal, ela contou tudo para a mãe, e é comum as mães prometerem segredo pras filhas e depois contarem tudo para os maridos. 
     - Se isso acontecesse, você acha que o pai de Isadora poderia querer defender a filha matando Vicente? E usaria veneno para isso ,mas errou o alvo? Não sei não, Júlia. Até agora nada indica que o homem seja violento. E veneno não é uma arma que se encontra por aí em qualquer esquina. De qualquer jeito, é uma teoria. E eu lamento ter que concordar que Vicente é um alvo mais fácil de explicar. Haveria o mais primário dos motivos para os crimes...
     - Dinheiro! - completou Júlia.
     - Amanhã, se o perito tiver novidades para a gente, pode ser que alguma luz apareça nesse túnel.
     - Adorei o disfarce hoje - disse Júlia, cortando a linha da conversa.
     - Ah, aquilo. Achei que seria mais fácil fazer o farmacêutico se abrir com alguém por quem não desse nem um cruzeiro* furado. E deu certo. As pessoas simplesmente não conseguem deixar de subestimar os outros, e isso é um ponto a nosso favor em qualquer investigação. 

(*As aventuras do inspetor Mário Russo se passam nos anos 80 / 90)


UMA TAÇA DE CIANETO


     No dia seguinte , pelo meio da manhã, Mário foi conversar com o perito. Ele estava animado com o que tinha descoberto.
     - Terminamos o exame de todos os copos e taças que recolhemos da barraca de pasteis onde as pessoas estavam. Foi uma boa ideia guardar tudo aquilo. 
     - Uma delas tinha veneno! - adivinhou Mário.
     - Uma das taças de vinho. Encontramos restos de Chandon misturados com cianeto de potássio. 
     - Havia dez taças de vinho na mesa, se me lembro - disse Mário.
     - Isso mesmo, todas idênticas. As garrafas de cerveja, de vinho, as outras taças e os copos estavam todos limpos, sem nenhum traço de veneno. 
     - Obrigado, Valter. Ótimo trabalho.
     - O seu trabalho, quer dizer... foi brilhante reter as taças. 
     - Só um palpite, só isso. Na verdade eu queria estar errado - respondeu Mário.
     Mário telefonou para a pousada em  Descansópolis e pediu para falar com Vicente. O velho estava no jardim da pousada, cuidando das flores para passar o tempo, e atendeu prontamente. 
     - Diga, inspetor.
     - Vicente, quem levou o vinho no domingo?
     - Deixe-me lembrar... Foi meu genro Getulino. Lembro que ele até fez um brinde! Muito constrangedor. Acho que já tinha pensado em fazer aquilo com antecedência. O vinho não está no cardápio da barraquinha da dona Maria. 
     - Imagino que aquelas taças sofisticadas...
     - Ah, ele deve ter levado também. O Getulino é assim, meio cerimonioso.
     - Obrigado pela informação, Vicente.
     - Alguma novidade, Mário?
     - Assim que eu puder, te conto. Mas... tome cuidado, está bem?
     - Você descobriu alguma coisa - quis saber Vicente.
     - Não se apavore, mas enquanto eu não souber quem era o verdadeiro alvo do assassino, peço que tenha cuidado. 
     Assim que colocou o telefone no gancho, Mário foi até a sala de perícias da delegacia. Inspecionou pessoalmente as dez taças - uma para Isadora, outra para Vicente e uma para cada membro da família. Procurou minuciosamente algum sinal que distinguisse a taça com veneno das demais. Não achou nada. Todas eram absolutamente iguais. Uma confusão na hora do envenenamento era plausível, mas isso dificultava ainda mais a questão. Quem seria a verdadeira vítima? A resposta ficava restrita aos que receberam as taças, em primeiro lugar. Vicente, Isadora, Heitor, Magnólia, Getulino, Demóstenes, Gertrudes, Gumercindo com a esposa Raíssa, e Letícia. Pensando friamente, em vez de ter um alvo bem definido de um homicídio, Mário tinha agora dez vítimas em potencial e um morto por engano. Certamente o pobre Teodomiro pegou a taça de alguém da mesa para experimentar o vinho, e acabou morrendo envenenado.
     Mário olhou de novo para o material recolhido da cena do crime. Havia duas garrafas de vinho. Provavelmente, o veneno tinha sido colocado na taça depois que a primeira garrafa acabou. O efeito do cianeto de potássio é muito rápido, portanto é lógico imaginar que ele foi colocado na taça quando a segunda garrafa foi aberta. Quem abriu a garrafa? Pela lógica seria Getulino, que se fez "mestre de cerimônias" da reunião. 
     Mário voltou para a sala principal da delegacia, pegou a chave da viatura e pediu a Júlia que lhe desse o endereço de Magnólia. 
     - Quer que eu vá junto?
     - Não é necessário. Gostaria que você revisse os depoimentos dos filhos de Vicente e seus cônjuges. Vamos ter que conversar com todos eles mais uma vez, pelo menos. Outra coisa: veja tudo que consegue descobrir sobre Getulino, o marido de Magnólia.
     - Pode deixar, chefe. 
     A casa de Getulino e Magnólia Araújo era na parte nobre de Capivari, a poucos metros do centro turístico. Um casarão de dois andares com estilo colonial e belos ciprestes na frente. Um portão de ferro dava acesso a um passeio de pedras que se estendia por cerca de trinta metros até a porta principal. Mário se anunciou pelo interfone e aguardou o portão automático se abrir. Avançou lentamente e estacionou diante da casa. 
     Magnólia veio recebê-lo com olhar curioso. 
     - Detetive, em que posso ajudá-lo?
     - É sobre a investigação da morte ocorrida no domingo, senhora Magnólia.
     - Ah, sim, uma fatalidade terrível! Estávamos tão animados! Foi uma tristeza. Fiquei muito assustada!
     - Não foi uma fatalidade, senhora. Será que posso entrar?
     - Ah, o que quer dizer? Foi um assassinato? Meu Deus, que horror! Claro, claro, vamos entrar. 
     O detetive foi conduzido a uma sala ampla luxuosamente mobiliada, com uma lareira no canto. Magnólia indicou-lhe uma poltrona, ofereceu algo para beber e, diante da recusa, sentou-se em outra poltrona de frente para o policial.
     - Seu marido está, senhora Magnólia?
     - Não, não, Getulino está trabalhando na imobiliária de que somos sócios. Só deve chegar à noite. Mas, se me permite perguntar, senhor Mário, por que gostaria de falar conosco sobre a morte daquele fazendeiro? Nós nunca o vimos antes. 
     - Eu tenho razões para crer que ele não era o verdadeiro alvo do assassino. O homem foi envenenado depois de beber de uma taça de vinho. Uma das taças que foram servidas à senhora, seus parentes e à Isadora, a... amiga... de seu pai. 
     - O que isso quer dizer, senhor Mário? Eu não entendo. 
     - Dona Magnólia, não quero assustá-la, mas é possível que o verdadeiro alvo seja alguém da sua família. 
     A mulher ficou repentinamente pálida, começou a suar e buscou um leque sobre a mesinha de centro. Passou a abanar-se nervosamente.  A empregada foi chamada, um copo de água com açúcar foi trazido, interjeições de desespero foram entoadas até que Magnólia conseguiu se acalmar. 
     - Mas... quero dizer... quem... por que alguém faria isso com a gente?
     - Não tenho certeza de nada, dona Magnólia. Por isso, qualquer coisa que a senhora possa me dizer sobre sua família poderá ser útil. 
     - Ora, somos pessoas normais, nada de mais. Não sei o que dizer. 
     - Por que não fala um pouco do seu relacionamento com seu pai? Estavam lá no domingo por causa dele, não é?
     Magnólia olhou um pouco para os dedos rechonchudos antes de responder. 
     - Bem, senhor Mário, devo dizer que não éramos muito próximos. Acabamos nos afastando por causa dos afazeres do dia-a-dia. Faltava tempo para a gente se abalar até aquele fim de mundo onde ele se enfiou. 
     - Mas isso mudou recentemente, não? Vocês passaram a ser muito mais presentes.
     - Sim, o senhor tem razão. 
     - Algum motivo para isso?
     - Bem, creio que achamos necessário nos aproximarmos de novo. O senhor entende, nosso pai está muito velho, fica muito sozinho...
     Mário impacientou-se:
     - Isso não tem nada a ver com Isadora? A nova amiga de seu pai?
     Magnólia voltou a ficar vermelha. Respondeu num tom de voz mais elevado:
     - O que o senhor está insinuando?
     - Que vocês se reaproximaram de Vicente com medo que ele faça alguma besteira, tipo incluir uma moça desconhecida no testamento, ou mesmo se casar com ela. 
     - Isso é absurdo! Eu...
     - O que é absurdo? A possibilidade de um casamento entre uma jovem e um idoso? Isso é mais comum do que imagina!
     - O senhor alegar que voltamos a procurar nosso pai por causa disso! É ridículo!
     - Como vocês receberam a notícia dessa nova amizade? Não devem ter soltado foguetes para comemorar. 
     - Ora, eu... nós... 
     Mário percebeu todos os sinais de uma mentira sendo construída na mente da mulher. Não deu tempo a ela.
     - Pelo contrário. Devem ter odiado. Devem ter se perguntado o que aconteceria com vocês se o velho gagá resolvesse deixar tudo para a moça. Ele juntou bastante dinheiro ao longo da carreira de escritor de sucesso, não foi?
     - O senhor... eu...
     - O que seu marido achou da novidade?
     Magnólia arregalou os olhos. 
     - Dona Magnólia, meu conselho é dizer a verdade. Eu vou descobrir, de qualquer jeito.
     Magnólia começou a chorar. Então disse, entre soluços. 
     - Ele achou ridículo, um capricho de um velho bobo. Ficou preocupado comigo, com o nosso futuro. É um homem bom, quer o melhor para mim...
     - Claro, tenho certeza disso. O que mais ele disse? Algo mais específico?
     Magnólia se levantou e caminhou até a lareira, visivelmente incomodada. Relutou, mas acabou contando.
     - Ele me disse que faria algo a respeito.
     - "Algo"? Ele disse o que faria?
     - Não, apenas isso. Que sempre há "alguma coisa que possa ser feita". Mas tenho certeza que ele não pensava em... envenenar a moça! Isso é impossível.
     - Não nos precipitemos, dona Magnólia. Ele não é acusado de nada. Nem a senhora. Se lembrar de mais alguma coisa relevante, me avise. O telefone da delegacia está neste cartão.
     - Sim, sim. Eu ligo, pode deixar. 
     Mário saiu do encontro com muitas teorias fervilhando na cabeça. Tanto sobre qual seria o verdadeiro objetivo do assassino, como o motivo e o eventual suspeito. Levava consigo também uma certeza: Magnólia tinha sido sincera em seu depoimento - ainda que talvez estivesse redondamente enganada sobre as boas intenções do marido.



JUNTANDO AS PEÇAS


     - Vamos ver o que temos até agora - decretou Júlia, animada. - Alguém quis matar alguém. Usou veneno. Provavelmente falhou e matou quem não tinha nada com a história. A vítima não apresenta nenhum indício de motivo para despertar o ódio de alguém, exceto talvez pela briga com o farmacêutico. Mas este já está descartado da lista de suspeitos.
    Mário anuiu com um gesto de cabeça. 
     - Os dois alvos mais prováveis são Vicente Matoso, rico escritor aposentado que de repente surgiu com pretensões românticas com uma moça que poderia se tornar sua herdeira; e Isadora, a tal moça dona da admiração do escritor. Nos dois casos o motivo mais provável seria dinheiro, o que joga os parentes de Vicente na lista de suspeitos. O fato do veneno ter sido encontrado numa das taças de vinho trazidas por Getulino aumenta as suspeitas contra este genro, especificamente...
     - Mas não prova nada - interveio Mário. - Qualquer um poderia ter se aproveitado da balbúrdia e da confusão etílica do grupo para colocar o veneno na taça da vítima. Só não contava que outra pessoa fosse tomar o vinho envenenado nela. 
     Júlia prosseguiu:
     - Conversamos com Getulino, para que explicasse sua declaração de que "daria um jeito" naquela história do sogro se enrabichar por uma menina. Depois de muito relutar o sujeito confessou que procurou um advogado para abrir um processo de interdição contra o sogro, por incapacidade mental. Que idiota!
     - Fomos conferir essa história com o tal advogado - ajuntou Mário - e bateu. Pode ter sido isso mesmo. Só prova que Getulino tem mal caráter e é dissimulado. Chegou a brindar à saúde de Isadora, o covarde.Mas esses defeitos não fazem dele um assassino em potencial. 
     - A conversa com Letícia não acrescentou nada que preste - continuou Júlia em seu relato da investigação. - O mesmo se pode dizer de Gertrudes. Gumercindo e Raíssa não parecem ter iniciativa pra fazer o que quer que seja sobre o que for; Heitor, o filho mais velho de Vicente, é um cabeça-quente, mas duvido que estivesse disposto a matar o próprio pai ou mesmo Isadora por causa de herança. E Demóstenes, este é o mais sedutor da família. Bonito e galante...
     - Acha mesmo? - perguntou Mário.
     - Não é questão de opinião, é um fato. O cara tem um jeito alegre, despreocupado. Parece estar sempre feliz. Tomei o depoimento dele por uma hora e meia e não encontrei nenhum detalhe fora do lugar. 
     - Hummmm - fez Mário.
     - Que foi? - quis saber Júlia.
     - Tudo no lugar. Tudo muito perfeito. Isso não existe.
     - Iih, lá vem você com suas manias...
     - Só acho que onde tudo está muito arrumado pode haver poeira embaixo do tapete... ou um esqueleto no armário.
     - Ficou com ciúmes porque eu disse que ele é bonito? - brincou Júlia.
     Mas Mário não mordeu a isca. 
     - Essa história toda é muito confusa, e estamos na estaca zero. Um idoso se apaixona por uma jovem, um homem que não tem nada a ver com a história morre, os suspeitos não se encaixam no perfil esperado de um assassino... 
     - Tudo muito inverossímil - avaliou a escrivã - a começar pela possibilidade de romance entre Vicente e Isadora. 
     - Acha mesmo que isso é impossível? - perguntou Mário.
     - Não digo impossível, mas bastante improvável. Aliás, não vai acontecer, a julgar pelo que Isadora me disse. 
     - Acha que seria improvável que uma moça de vinte anos se apaixonasse por um homem de 70?
     - Não me entenda mal, Vicente tem seus encantos, mas desperta mais um amor de filha para pai do que uma paixão avassaladora. 
     - Você não se considera capaz de se apaixonar por um homem mais velho? - Mário ficou curioso.
     - Depende do homem mais velho, e quão mais velho ele seja - respondeu prontamente a escrivã. - Não falo tanto da idade cronológica, mas da idade física. Tem muito homem acima dos sessenta que ainda está em ótima forma. Melhor que muito moleque. Isso conta. 
     Mário ficou pensativo, olhando para algum ponto invisível à sua frente. Júlia sabia que quando o chefe assumia aquela expressão era melhor se calar e aguardar. 
     - Sejamos tradicionais. Vamos investigar o aspecto financeiro do caso. Levantar a situação dos envolvidos, dívidas, negócios, o que conseguirmos. 
     - De todos eles? - perguntou Júlia. 
     - De todos os parentes de Vicente. Claro que terá que ser uma pesquisa extraoficial. Não temos o suficiente para requerer uma quebra de sigilo bancário de ninguém. Vamos conversar por aí, com pessoas que se relacionam com eles. Sempre tem alguém disposto a falar um pouco da vida alheia. Qual é mesmo a ocupação dos filhos de Vicente?
    - Deixa eu ver - Júlia consultou um papel numa pasta - Getulino, corretor de imóveis. Parece bem de vida, mas as aparências enganam. Magnólia, a esposa, fica cuidando da casa. Letícia é veterinária, tem um consultório em Abernéssia. Heitor mora em São Paulo e tem uma loja de decoração na Santa Ifigênia. Viúvo. Gumercindo, publicitário em São José dos Campos. Gertrudes é professora, mora em Campinas com o marido Demóstenes. Ele é chefe do setor administrativo de uma grande fábrica de medicamentos. 
     - Ah é ? - Mário se interessou - Ele teria acesso a materiais dos mais diversos, não? Cianeto, por exemplo.
     - Você cismou com o moço, hein, Mário. Mas sim, acho que para ele não seria difícil conseguir o veneno que matou Teodomiro. 
     Mário voltou a pensar olhando o vazio. Depois disse:
     - Comece a pesquisa financeira por ele.
     Deu trabalho, mas Júlia conseguiu reunir indícios sobre as contas dos principais envolvidos. E para surpresa dela mesma, Demóstenes era o que estava em piores lençóis. Se fosse apenas uma dívida comum, não haveria tanto problema. Mas o homem acabou se enrolando com agiotas e gente da pesada. Parece ser um apostador compulsivo, e que se dá mal quase sempre. Seu rombo nas finanças beirava o milhão de cruzeiros. Uma pequena fortuna que crescia a olhos vistos, impulsionada pela inflação galopante que assola a economia nacional, e pelas taxas impostas pelos credores. 
     - A coisa é séria, Mário - relatou Júlia. - Parece que ele já andou recebendo ameaças de morte se não acertar as contas com os agiotas. 
     - O tipo de pressão que leva um homem ao desespero - disse Mário. - A ponto de matar para sobreviver. 
     O detetive pegou o paletó no cabideiro.
     - Vamos até Campinas. Quero conversar pessoalmente com o seu queridinho.
     - Ele não é meu queridinho! - protestou Júlia, irritada.  
     A viagem de três horas transcorreu sem incidentes. Pelo caminho Mário não resistiu ao impulso de saber mais sobre as preferências da bela colega. 
    - Então você gosta de menininhos...
     - Claro que não. Mas não me sinto atraída pela terceira idade. Isso é crime?
     - De forma alguma. O que espera de um homem?
     - Primeiro de tudo, inteligência - respondeu a moça. - Burrice é brochante. 
     - Músculos?
     - Em exagero são ridículos.
     - Dinheiro?
     - Não é fundamental, embora seja atraente. 
     - Você está me dando uma receita de bolo.
     - Você faz perguntas de quem quer um modelo pronto. Não é assim que funciona - respondeu Júlia. - Tem que ter algo... inexplicável. Uma atração gratuita. Quando ela ocorre, até os defeitos perdem a importância.
     - Já sentiu isso antes?
     Júlia silenciou por uns instantes antes de responder:
     - Já. Pelo meu ex-noivo. Mas perdeu o brilho quando descobri que ele me traía.
     - Relacionamento é um troço complicado - comentou Mário, meio sem saber o que dizer.
     - Sim. Por isso estou tranquila e bem, sozinha. 
     - Vicente também achava que estava bem sozinho até conhecer Isadora. 
     - É desse "algo" estranho e inexplicável que estou falando. Quando bate, muda as prioridades da gente. 
     A tarde caía quando chegaram a Campinas. Mário foi direto para a casa de Demóstenes e Gertrudes. Ele ainda estava no trabalho. Gertrudes recebeu os policiais, com estranhamento no olhar. 
     - O que vocês poderiam querer com ele?
     - Nada demais - disse Júlia - só conversar sobre o que aconteceu domingo. Estamos investigando a morte do fazendeiro, e qualquer informação pode ajudar. 
     Mário observou a mulher à sua frente. A sala onde estavam, as janelas cortinadas, os objetos de decoração. Nada denotava a crise financeira em que Demóstenes estava metido. Gertrudes saberia da situação? O inspetor apostava que não.
     - Posso ir ao banheiro? - pediu.
     - Pelo corredor, primeira porta à esquerda. 
     Mário se levantou e andou sem pressa. Passou direto pela porta do banheiro e foi até o fundo do corredor. Girou a maçaneta de uma porta, com cuidado para não fazer barulho. Era o quarto do casal. Mário entrou e foi até os fundos do cômodo, onde havia outra porta. Era o banheiro da suíte. Observou a pia, uma cuba com duas torneiras. Do lado esquerdo, cremes para a pele e uma escova de cabelos. Do direito, um aparelho elétrico de barbear, outra escova de dentes, um pequeno gabinete. Abrindo a porta, Mário encontrou frascos de desodorante, loção após-barba, alguns remédios. Um vidro chamou sua atenção. Um pequeno vidro transparente com uma tampa de rosquear branca e a inscrição em baixo-relevo "Medley". O frasco estava vazio, mas parecia ainda reter um resquício de pó branco. Mário tirou um lenço do paletó e pegou o vidro com ele. Notou uma pequena etiqueta com números e letras - um código de produção, talvez. Tirou o bloco de anotações do bolso e conferiu algumas informações. Colocou o objeto de volta no lugar e voltou para a sala.
     - Vamos voltar outra hora, dona Gertrudes. Obrigado pela paciência. 
     - Tem certeza? Ele não deve demorar agora. 
     - Sim, vamos voltar amanhã. 
     Na saída, Júlia fuzilou o chefe com um olhar interrogativo.
     - O que foi aquilo? Por que não quis esperar?
     - Era desnecessário, Júlia. Já sei o que precisava.
     - Mesmo? E o que seria?
     - Que Demóstenes é culpado. Agora o fundamental é conseguir a prova que o coloque na cadeia. 
     Mário foi até um orelhão e ligou para um amigo da polícia campineira. Este o colocou em contato com o juiz criminal que costuma agilizar as demandas de policiais em investigação. Antes das oito da noite, Mário tinha um mandado de busca para a casa de Demóstenes. Pediu reforços, e em menos de dez minutos o estranho frasco de vidro transparente estava dentro de um saco de prova.
     Na sala da casa, Mário resolveu confrontar o homem. 
     - Quer economizar o meu tempo e me dizer o que vou encontrar dentro deste vidrinho, Demóstenes?
     O outro ficou vermelho como um peru, começou a suar frio. Não sabia o que dizer. 
     - Eu mesmo vou antecipar a jogada, então. Aposto que o exame químico do meu perito vai encontrar cianeto de potássio. Você conseguiu o veneno na fábrica de remédios onde trabalha. Achou que ninguém daria pela falta de uma retirada tão pequena do produto. E provavelmente estaria certo, se eu não tivesse entrado em contato com a empresa e pedido para eles fazerem uma checagem do estoque do veneno. 
     Júlia se surpreendeu com essa informação de Mário. 
     - Foi antes de sair da delegacia, mais cedo - disse o inspetor, à guisa de informação para a colega. - Relatei a importância de ter a informação rapidamente e um técnico muito solícito se prontificou a verificar. Liguei para ele e tive a confirmação de uma retirada de alguns miligramas, sem o registro adequado. Ele me passou o número de série do material desaparecido. Bate com o código nessa etiquetinha aqui, no vidro que achei no seu gabinete do banheiro. Aí foi fácil confirmar minhas suspeitas. Você pegou o veneno. Você colocou o cianeto na taça de vinho em Campos do Jordão. Você matou o fazendeiro que participava inocentemente da festinha com sua família. Mas não era ele o seu alvo, obviamente. 
     Demóstenes ia se encolhendo na poltrona, como se fosse desaparecer num buraco no chão. Gertrudes olhava para o inspetor, de boca aberta, petrificada. 
     - Deminho, diga que é mentira. Esse homem está doido.
     Mas Demóstenes ficou calado. 
     - Continuando: seu crime tinha um objetivo bem definido: proporcionar-lhe vantagem financeira que o tirasse da situação crítica em que se encontra. E tinha que ser rápido. Você poderia pedir ajuda, claro, mas seu orgulho o impediu. O homem bem sucedido, amado por todos, o "cara legal"... não poderia ser jamais um fracassado. Não, você escolheu o caminho que considerou menos humilhante: um crime que dificilmente seria descoberto. Sua intenção era matar Vicente Matoso, seu sogro, antes que ele mudasse o testamento em benefício da nova amiga, Isadora. Você não podia correr o risco de que Gertrudes ficasse sem nada. Se Vicente morresse, a ameaça de uma mudança no último desejo do velho estaria afastada e, de quebra, o dinheiro chegaria a suas mãos de forma muito mais rápida. Um plano bem simples, na verdade. 
     - Mas deu errado, não é? - balbuciou Demóstenes. 
     - Deminho, o que você está dizendo? -  Gertrudes começou a chorar.
     - Perdão, Trudi. Perdão. Estava desesperado! Devo muito dinheiro para um pessoal que não aceita levar prejuízo. Ou recebem o que é deles ou acabam com quem ficou devendo. - Demóstenes virou-se para Mário - O que acontece agora?
     - Você vai pra cadeia por homicídio doloso. Com agravantes como motivo torpe e incapacidade de defesa da vítima. Vai passar um longo tempo na cadeia. 
     Demóstenes abaixou a cabeça, exausto. Gertrudes desmaiou e foi amparada por um dos policiais que deram apoio à batida na casa. 
     Nada mais havia a fazer ali.
     - Vamos voltar para Campos do Jordão, Júlia. Com sorte chegamos lá antes do dia amanhecer. 



XEQUE-MATE


     Naquele mesmo fim de semana, Mário visitou o amigo na pousada para uma partida de xadrez. Estava preocupado com a saúde de Vicente depois de tantas emoções, mas o encontrou melhor do que nunca. 
     - Lamento muito essa história toda, Vicente. 
     - Ora, meu amigo. Eu só tenho a lhe agradecer. Para dizer a verdade, sempre achei o Demóstenes meio dissimulado com aquele bom humor perene dele. Ninguém é tão perfeito o tempo todo. Estou triste por Gertrudes, mas ela é jovem e vai conseguir se refazer. Quem sabe até arranjar um novo amor, apesar de que acho que ela vai esperar pelo marido; tem mais a ver com a personalidade dela.
     Mário achou muito triste uma filha perdoar o homem que tentou matar o próprio pai, mas Vicente parecia lidar bem com aquele fato. Estavam afastados há muito tempo, Vicente e os filhos, afinal de contas.
     - Fiquei sabendo o que fez pela viúva de Teodomiro - disse Mário, mudando de assunto. - Muito generoso de sua parte acertar todas as dívidas do falecido.
     - Dinheiro só é bom se fazemos bom uso dele. E depois, de certa forma, o homem morreu por minha causa - respondeu o escritor. 
     Mário discordava daquela opinião mas admirou a atitude do amigo. Não quis discutir.  
     Os dois permaneceram em silêncio enquanto um cavalo de Vicente capturava a rainha de Mário.
     - Xeque - disse o escritor. 
     - E quanto a você, Vicente? Está lidando bem demais com isso tudo.
     - Tenho mais em que pensar, meu amigo. Tenho novidades. Isadora aceitou viajar comigo pela Europa. Fui falar com os pais dela, expliquei a situação. Eles ficaram meio arredios, mas acho que acreditaram nas minhas boas intenções. Foram com a minha cara, como dizem os jovens. Partimos na semana que vem.
     - Ora, ora! Essa é que é uma grande notícia! Eu te disse para não se menosprezar. 
     - Não sei no que vai dar esse caso, mas uma coisa é certa: está muito mais interessante do que passar o resto da vida nessa varanda lendo livros antigos e jogando xadrez.
     - Ora, muito obrigado pela consideração! - brincou Mário, e os dois riram.
     - Mas lembre-se de uma coisa - disse o policial depois de um tempo.
     - O que é?
     - O amor, como tudo na vida, pode ser maravilhoso, mas exige uma boa cota de sacrifício.
     - Hum, então se revela um romântico, no fim da história? 
     - De forma alguma - disse Mário. - Este é um comentário de uma praticidade absoluta. É como sacrificar a rainha para vencer uma partida de xadrez.
     Vicente arregalou os olhos e mirou o tabuleiro enquanto Mário cercava o rei do adversário de forma inescapável.
     - Xeque-mate - disse o detetive, com um sorriso tranquilo. 




FIM 
     
     







     


      

Comentários

Postagens mais visitadas