"Não sei como resolver este problema"

     


Chame-me de simplório ou ingênuo… mas de todas as maravilhas da tecnologia moderna, internet, Netflix,Whatsapp, Instagram e pipoca de microondas, a que mais me fascina é o GPS. Ou, melhor dizendo: os aplicativos de localização no trânsito.
     São incríveis. Programados, nos levam sem tropeços para onde queiramos ir. Sempre com uma melodiosa voz feminina orientando e por vezes protegendo! "Há um radar a dez metros", avisa. Fantástico. 
     Parece onisciente, esta entidade que nos guía pelas ruas das cidades. É como um Caronte polivalente que, em vez de nos conduzir exclusivamente para o Hades, consegue nos levar para qualquer canto do universo conhecido.
     Fato raríssimo é encontrar algo que essa tecnologia apaixonante não possa fazer. Mas existe um limite. 
     Acho que este é o momento para dizer que esta é uma história absolutamente verídica, em todos os seus mínimos detalhes. Ok, talvez tenha alguns pequenos detalhes alterados, como os nomes das personagens e uma ou outra conversação. Mas a estrutura real dos fatos está toda aí, o leitor pode confiar.
     Foi uma cena das mais prosaicas. Um casal num carro indo para uma assistência técnica consertar uma TV. Guiados pelo Google Maps, um conforto absurdo para ele, ao volante, orientado a todo momento pela melodiosa voz feminina: "a 300 metros vire à esquerda para avenida S-1".
     O casal conversa sobre uma notícia veiculada na TV; uma briga de trânsito que quase acabou em tragédia.  
     - O povo não tem mais tolerância. Qualquer coisa, está agredindo, ameaçando, até matando - comenta o marido.  
      - Permaneça na avenida S-1 por um quilômetro e depois...
     - Verdade. Mas nesse caso da matéria eu dou razão pro motorista da caminhonete. Jogou o carro na frente do outro pra se defender. O cara vindo pra cima dele com uma chave de roda na mão! - declara a esposa.
     - … pegue a rotatória na avenida S-1 e depois pegue a terceira saída para avenida T-63.
     - Eu não sei o que faria. Acho que travaria. Muita violência essa história toda - diz o marido.
     -Siga em frente por um quilômetro.
     - Ah, eu jogava o carro do mesmo jeito. Vai que estivesse com nosso filho aqui no carro, sei lá. "Tacava" o carro nele mesmo, do jeito que o motorista fez.
     - Em trezentos metros vire à esquerda…
     - Credo Julia!
     - … para a avenida C-233.
     - Credo nada! Tem que se defender. Vai argumentar com um sujeito maluco armado com uma chave de roda!
     - Siga na avenida C-233 por duzentos metros e…
      - Eu acho que não conseguiria…
     - Vire à direita na avenida C-238 e…
     - Aaaah mas você não pode vacilar numa hora dessa Samuel… Tem que agir rápido e perguntar depois. Já pensou se o cara bate em você e ainda me agride? Tudo por causa de uma freada no trânsito?
     - …siga na avenida C-238 por duzentos metros. 
     - Mas….
     - Tem mas não, Samuel. Homem ou pé de alface? Joga logo o carro em cima do desgraçado e ele que se dane. 
     - Vire à esquerda na avenida T-9…
     - Mas…
     - Siga adiante por quinhentos metros…
     - Falta iniciativa a você às vezes, sabe… precisa tomar a dianteira das coisas e fazer o que tiver que fazer pra resolver o problema.
     - ...e vire à direita no cruzamento…
     - Mas…
     - Um vacilo e a coisa toda desanda. Sempre pronto. Sempre atento. Você tem tomado sua vitamina Samuel? Precisa dela pra manter o foco. Tá disperso e desatento. Numa briga de trânsito você levava a pior, tenho certeza.
     -…vire à esquerda…
     "Como faço pra ela parar um pouco de falar e ouvir a minha opinião nessa história", pensou Samuel, meio tonto pela falação dupla - da esposa e do Google Maps.
     - NÃO SEI COMO RESOLVER ESTE PROBLEMA, disse inesperadamente o aplicativo. Do nada. Surpreendentemente, com uma entonação um pouco menos mecânica que de costume, em que se percebia uma nota de desapontamento e mesmo frustração, se é que seria possível abastecer um programa de computador com tais sentimentos. 
     Julia parou de falar, Samuel olhou assustado para o celular de onde veio a estranha frase. Os dois se entreolharam e seguiram em silêncio por boa parte da curta viagem.
     - Que estranha essa mensagem! Nunca vi um GPS falar assim, exclamou Julia depois de um tempo. 
     - É… estranho… 
     Samuel jogou um olhar de cumplicidade para o aparelho que o guiava, achando que aquela máquina o entendia muito bem. "A vida é assim, algumas coisas não têm solução depois de vinte anos de casados", pensou, "e quando não há mais para onde ir, é porque…"
    
     - Você chegou ao seu destino - complementou a voz melodiosa no aplicativo.
     

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