Tempo de reconciliação

     Foi contra a vontade que Rui saiu do carro - praticamente arrastado pela mulher. 
     _ Mas meu Deus! Para de agir como criança. Anda logo. 
     _ Criança? Eu sou criança? O sujeito me apunhala pelas costas e eu sou criança porque não fico sorrindo pra ele?
     _ Muda essa atitude Rui. Não é assim que se acaba uma amizade tão antiga.
     Antiga, realmente. Rui e Arnaldo se conhecem desde os tempos de escola. Sempre foram inseparáveis. Arnaldo, um moleque grande para a idade e com veia de lutador desde cedo, defendia Rui dos alunos mais velhos que praticavam o bullying numa época em que esse nome nem existia. 
     Acabaram os dois fazendo a mesma faculdade: artes cênicas naquela simpática cidade de interior - uma escola católica mantida por freiras. Apesar da direção religiosa, uma instituição com um currículo de vanguarda no ensino da arte, abrindo espaço para novas mentalidades.
     Formaram-se no mesmo ano. Rui se tornou ator. Arnaldo, depois de bater a cabeça em alguns textos teatrais de qualidade duvidosa que nunca foram encenados, resolveu se dedicar a montagens de textos de outros autores. Tornou-se diretor de teatro e, depois, de televisão. 
     Rui seguiu a trilha do estrelato. Os olhos claros, o cabelo liso e loiro, a cara de bebê chorão caíram no gosto do público - principalmente o feminino. Tornou-se galã de novela, ídolo das colegiais nos tempos das saias xadrez e das meias três quartos.           Os anos se passaram, e o galã foi ficando grisalho. Para algumas, ainda mais sedutor e interessante. 
    Enquanto isso, Arnaldo acumulava alguns sucessos no currículo como diretor de novelas. Trabalharam juntos, os dois amigos, em mais de uma produção para a TV. Até que os convites para o ator de meia idade começaram a rarear…
   Pela mesma época Arnaldo resolveu mudar de ramo, tornando-se diretor de produção de uma conceituada agência de propaganda. 
     A parceria ainda resistiu por algum tempo. Arnaldo encaixou Rui em meia dúzia de campanhas publicitárias para a TV e mídia impressa. Mas ficou nisso. Rui sondava o amigo sobre novas oportunidades de trabalho, Arnaldo desconversava. Até que um dia, aquela famosa marca de sabão em pó abriu espaço para contratação de um novo garoto-propaganda.
     _ Poxa, Arnaldo, me coloca nessa! Tenho tudo que a marca exige pra vender o sabão. Cê sabe disso!
     Mas ao que parece Arnaldo não pensava do mesmo jeito. Não respondeu, ou se limitou a um "vamos ver".
     Semanas de insistência depois, Rui descobriu que tinha sido preterido por um atorzinho da novíssima geração, mal saído das fraldas. 
     _ Isso não se faz, Arnaldo. Te pedi tanto!
     _ Não te prometi nada, Rui - respondeu Arnaldo já irritado com a insistência do amigo. _ Os donos da marca que decidem. Queriam alguém mais jovem.
     _ Mas você podia argumentar a favor da experiência né?
     _ Quer saber? Eu concordei com eles. O rapaz se saiu super bem, e além do mais ele é o novo queridinho das donas de casa.
     _ Como sabe disso? Baseado naquelas pesquisas de botequim que você encomenda? 
     - São pesquisas mais convincentes do que a sua canastrice!
     - Repete isso, filho da puta! Repete se for homem!
     - SÃO MAIS CONVINC
     Arnaldo não teve como terminar a frase com a boca atingida em cheio por um direto de esquerda. 
     _ Te mato! - Gritou Rui.
     _ Agora você passou dos limites - berrou Arnaldo.
     Apesar das décadas passadas desde os tempos de escola, Arnaldo continuava robusto, graças à academia frequentada assiduamente. E continuava bem mais forte que o colega. Surpreendido pelo primeiro murro, tomou a iniciativa e derrubou Rui com dois sopapos. 
     Os ex-amigos se engalfinharam em pleno corredor da agência de propaganda. Derrubaram o bebedouro esparramando água pelas mesas do departamento de criação. Rui pegou um pote de tinta nanquin e arremessou contra o outro, que se defendeu com uma prancheta que agarrou de um balcão próximo.
     Voltaram a se engalfinhar, até que os funcionários da agência quebraram o torpor da surpresa e separaram os combatentes. Rui com um olho roxo, Arnaldo com a boca sangrando.
     _ Traidor, safado, filho da puta - bradou Rui.
     _ Canastrão! - respondeu simplesmente Arnaldo dando-se por satisfeito, já que não conseguiria ofensa maior para os brios do rival. 
     Depois daquela patética cena de intolerância e violência, os dois se afastaram, mancando um pouco Rui, com as costas doloridas Arnaldo, ambos acreditando que seria para sempre.
     Talvez fosse mesmo eterna a separação, se não existissem nessa história duas entidades todo-poderosas, invencíveis, que conseguiriam esfriar o sol se a isso se dedicassem: as esposas deles.
     Acontece que Rute, esposa de Rui, e Angela, esposa de Arnaldo, tornaram-se amigas de unha e carne. Não admitiam aquele rompimento.
     - Mas Rute, não fui eu que quis assim! Ele me afastou sendo um traíra de marca maior - defendia-se Rui.
     - Nem que ele ganhasse um Oscar e dedicasse o prêmio a mim, eu perdoaria aquele soco! - lamuriava-se Arnaldo.
      Não há, porém, teimosia masculina que resista ao poder feminino de convencimento. Passados meses do triste espetáculo de pugilato, Rute e Angela chegaram à conclusão que já bastava daquela novela ruim. 
     Uma bem-orquestrada greve de sexo derrubou a animosidade entre os ex-amigos.
      _ É só fazer as pazes que a gente volta a ensaiar a versão pornô de Romeu e Julieta,dizia Rute para Rui. _ Você decide.
     _ Quer voltar a experimentar o kama Sutra, Arnaldo? Já sabe! Tô com saudade da minha amiga e não quero brigas entre nossos maridos - negociava Angela. 
     E foi assim que chegamos à cena que abre esta história. Rute e Angela combinaram um jantar com os maridos na casa do diretor de produção. 
     O jantar transcorreu sem incidentes dignos de nota. Mas o mutismo dos homens não dava margem para a menor demonstração de afeto, e o ressentimento foi a tônica da reunião. As mulheres aproveitaram para colocar meses de conversa em dia, enquanto os dois se observavam calados, com veneno no olhar. 
     Terminado o jantar, à porta, as esposas exigiram um aperto de mãos entre os maridos na despedida. Um mínimo de civilidade, em nome dos velhos tempos. 
     As mãos mal se tocaram enquanto os dois resmungavam um "até mais ver" mal humorado. A eletricidade pairava entre aqueles dois. Rui se virou bruscamente e tomou o rumo do carro, seguido por Rute pedindo desculpas por aquele comportamento inaceitável. Arnaldo fechou logo a porta e foi para o sofá, onde abriu um jornal do dia anterior e fingiu não ouvir as reprimendas da esposa. 
     Como se vê, não se pode chamar este encontro de uma reconciliação, propriamente. Quando muito, um jogo de cena para quebrar a tortura imposta pelas esposas. Se era esse o objetivo, ficaram os dois satisfeitos, pois tanto o Kama Sutra como o Romeu e Julieta pornô voltaram à rotina daqueles lares.
     Muitos anos se passaram. Rui e Arnaldo não voltaram a se falar, apesar de, algumas vezes, terem sido flagrados observando velhas fotos dos tempos de escola - saudosos da velha amizade, talvez? Quase certo que sim. Mas, tirando os momentos em que as esposas os arrastavam para algum programa em conjunto, nada mais restou daquela camaradagem tão antiga.
     Passado muito tempo, Rui acabou encontrando Arnaldo no bar do clube que os dois frequentavam. O constrangimento exigiu pelo menos um "boa tarde", por pura educação. E assim fez Rui. Arnaldo respondeu polidamente, e também constrangido, tomou lugar ao lado do antigo amigo. 
     - Cerveja? _ ofereceu Rui.
     - Obrigado - aceitou Arnaldo.
     Silêncio.
     _ O que tem feito? - murmurou Rui, mais para quebrar aquele incômodo silêncio do que para receber uma resposta.
     _ Na verdade, nada - respondeu Arnaldo. 
     Depois de pensar um pouco, começou a desabafar.
     _ Fui demitido da agência. 
     Rui ficou surpreso com aquela confidência. 
     _ Quando foi isso?
     _ Há meia hora. Engraçado te encontrar aqui justamente agora. Nem a Angela sabe disso ainda.
     Rui ficou sinceramente condoído.
     _Sinto muito, Arnaldo. 
     Mais silêncio.
     _ Corte de despesas? - quis saber Rui.
     Arnaldo demorou um pouco para responder.
     - Na verdade, não. Você vai adorar… Me disseram que a agência precisava de novas ideias… de sangue novo… gente mais jovem… Promoveram um redator que tem idade pra ser meu neto! Disseram que os textos dele "transpiravam juventude"…
     Fez-se novamente silêncio, quebrado por uma risada contida de Rui.
     _ Desculpe, não quis rir da situação. _ disse Rui, já sem conseguir evitar o riso.
     _ Pois é, filosofou Arnaldo - Achei que só atores ficavam velhos demais pra trabalhar!
     Diante do comentário, Rui explodiu numa risada irresistível. Arnaldo também não se conteve e desatou a rir.
     _ Um brinde! - propôs Arnaldo - Ao tempo, esse carrasco insensível!
     _ Ao tempo - concordou Rui - esse monstro sem piedade. 
     Beberam entre gargalhadas. E repetiram os brindes e as gargalhadas várias vezes.
     Horas mais tarde, Rute e Angela se dirigiram para o bar do clube depois de uma partida de tênis. Encontraram Rui e Arnaldo abraçados, cantando alto sucessos da bossa nova e chorinhos de Pixinguinha. Riam desbragadamente, irmanados pela amizade renascida das cinzas - e pelas muitas cervejas. 
     _ Quem entende os homens? Perguntou Rute para a amiga.
     _ Acho que nem eles mesmos - respondeu Angela.  

(inspirado num sonho)

Comentários

Postagens mais visitadas