Anna

     Anna era uma menina normal, em uma família normal. 
     Não sofreu grandes traumas na infância. Tampouco vivenciou alegrias fora do comum. Uma vida simples, numa vizinhança pacata, com pais que, se não eram modelos de guardiões amorosos, ao menos se esmeravam como provedores e educadores. O pai comerciante de insumos para construção civil, a mãe dona de casa, não tinham grandes posses nem grande cultura. O suficiente para não passar necessidades, no campo financeiro... e para interpretar um texto não muito complicado ou longo, no campo intelectual.








     Nesse lar sem exageros nem faltas, cresceu Anna. Teve lá suas noções de religião, primeiro com a mãe, depois com as aulas de catecismo na igreja do vilarejo. Achava aquilo tudo muito chato, mas se empenhava em aprender alguma coisa para não dar desgosto à mãe devota. O mesmo acontecia na escola, onde os números e as regras da matemática pareciam indevassáveis. Preferia história, com as vidas de reis, generais, príncipes, conquistadores. E línguas, que abriam para ela o mundo encantado da poesia e dos romances. 
     Quando Anna chegou aos 15 anos surgiu uma oportunidade de estudar na Capital. Um primo distante da mãe foi visitá-los, contou que tinha feito sucesso e construído uma pequena fortuna. Ofereceu-se para abrigar e custear os estudos da menina numa escola que figurava entre as melhores do país. Os pais relutaram um pouco em deixar a filha sozinha - ou na companhia daquele quase desconhecido primo - na cidade grande, mas acabaram concordando que seria o melhor para ela. 
     Dessa forma, Anna embarcou no trem que a levaria para uma mudança completa de vida. 
     Os dois primeiros anos transcorreram sem incidentes. O primo da mãe prosperava, a escola ensinava, Anna aprendia tanto quanto possível. Expandiu seus laços de amizades, conhecendo adolescentes com gostos e hábitos muito diferentes dos dela. Um ambiente em que a sensualidade à flor da pele mais de uma vez a deixou rubra de vergonha. Nas rodas, além da libido exaltada, encontrou drogas das mais variadas. Para se enturmar, acabou experimentando de tudo. Tanto no sexo como no uso daquelas substâncias proibidas.
     O primo, atarefado e preocupado com a própria vida, descuidava da garota. Não cobrava nada, esquecido das promessas que fizera aos pais de Anna. Os dois eram como estranhos que coabitavam. Viam-se brevemente de manhã, no café, e à noite, no jantar, com algum eventual intervalo também no almoço. Nesses momentos o mutismo era quase completo. Anna balançava levemente a cabeça, ao som do rock que saída dos fones de ouvido. O outro, geralmente com um jornal aberto na página de economia, levava o garfo à boca com a mecanicidade de um robô. Com o tempo, mesmo os cumprimentos de boa noite ou bom dia foram suprimidos daquela relação gelada. 
     Anna aproveitava e se deliciava com aquela liberdade. Começou a chegar cada vez mais tarde em casa. Na primeira vez, o primo ainda tentou advertí-la. A moça ouviu calada. No final, anuiu com a cabeça. No dia seguinte fez a mesma coisa, como se o dono da casa não tivesse dito nada. 
     Passou uma noite fora de casa. Vivenciou uma orgia regada a drogas madrugada adentro. De manhã, arrasada pela ressaca, chegou em casa cheirando a álcool, a maquiagem escura de gótica borrada no rosto, roupas em desalinho. Recebeu um olhar de reprovação do dono da casa, que não se dignou sequer a falar qualquer coisa. Ele apenas fechou o jornal, pegou a valise e saiu para o trabalho. Anna agradeceu por aquele silêncio e subiu para o quarto, onde dormiu o dia todo. 
     Ela se tornara uma bela moça. Cabelos negros e lisos, cortados na altura dos ombros. Olhos de um verde profundo, como uma floresta tropical. Grandes e luminosos, pareciam faróis hipnóticos. Lábios grossos, desenhados, sensuais. O corpo esbelto confundia o observador, indeciso se ela era magra. A verdade é que as curvas estavam todas lá, nos lugares certos, nos volumes mais sedutores, mas ainda assim a clavícula visível e os ombros pontudos davam à moça uma impressão falsa de magreza excessiva. Só numa segunda olhada - que Anna certamente recebia dos homens - percebia-se que isso não era verdade, e que a compleição física da garota era perfeita. Aos dezesseis anos, parecia ter mais idade. Um ar de mistério se desprendia de seu rosto levemente ovalado, completando o quadro de sedução que a envolvia. 
     Nessa época, a situação financeira do primo começou a degringolar. Anna notou uma postura mais nervosa dele durante os cafés da manhã. Uma vez, chegou a amarrotar o jornal e jogá-lo com fúria no chão antes de colocar a cabeça entre as mãos e esfregar os cabelos com tanta força, que parecia querer arrancá-los. Anna tentou perguntar se estava tudo bem, apesar dos sinais visíveis de que a resposta era negativa. O primo se limitou a gritar um "não se meta", esmurrar a mesa e sair da sala de jantar. 
     Anna apenas intuiu que a origem daquele desgosto era financeira. Nos dias seguintes, isso se confirmou. A empresa do primo estava falida. Pelo que saiu no noticiário depois, Anna ficou sabendo que ele havia se envolvido com transações suspeitas na bolsa de valores, manipulando informações para supervalorizar papéis podres. Primeiro, comprava as ações a preço de banana. Depois bombardeava o mercado com falsas notícias de injeção de capital e novos investimentos, a ponto das ações alcançarem um nível adequado nos pregões. Quando a margem de lucro atingia o patamar desejado, ele vendia tudo, faturando muito mais do que havia gasto, e deixando os eventuais compradores dos papéis com o prejuízo. 
     Aquela manipulação foi descoberta pela Comissão de Valores Mobiliários. O espertalhão foi denunciado e arrolado num processo por crime contra o sistema financeiro. Em contrapartida os negócios do empresário caíram em descrédito; seu escritório de corretagem perdeu clientes um atrás do outro - ninguém queria o nome ligado a um reconhecido malfeitor. Mesmo suas empresas que funcionavam dentro das regras sofreram o golpe. Tudo o que restou foram dívidas e processos na justiça. 
     Acossado, e diante da prisão iminente, as brigas começaram dentro de casa. Numa delas, o empresário jogou notas de dinheiro na cara de Anna e ordenou que ela voltasse para a casa dos pais. Entre lágrimas, a moça pediu para ficar. Não adiantou. Aturdida, Anna colocou tudo que tinha numa mala, pegou o dinheiro e saiu dali. Foi a última vez que viu aquele homem. 
     Durante longas horas, Anna ficou perdida, sem saber o que fazer. Voltar para o interior estava fora de questão. Muito menos avisar os pais daquela situação precária. Isolados do mundo como viviam, provavelmente nem souberam da derrocada do primo. E assim ficariam, na ignorância, se dependesse dela. Mas, o que fazer? Para onde ir? Resolveu pedir ajuda aos amigos mais próximos. Sabia que alguns deles haviam saído de casa e ocupado um pequeno apartamento no subúrbio, onde viviam por conta própria, um dia de cada vez. A aventura pareceu muito sedutora naquele momento de desespero. Anna pegou o ônibus e foi até o endereço dos colegas, um lugar que ela já havia visitado várias vezes, em festas das mais quentes.
     Os pais, como presumiu a jovem, nem tomaram conhecimento das importantes transformações ocorridas na vida dela. O primo, sufocado pelos próprios problemas, não se ocupou de avisá-los do rompimento com a parente. Também não verificou se ela havia seguido sua instrução de voltar para os pais. E o afastamento se tornou inevitável. Para os pais, apesar do afeto meio burocrático que os unia, a filha era encarada como uma "tarefa" da qual haviam se livrado com a partida dela para a cidade grande. Para ela, os pais eram uma lembrança. Logo nos primeiros meses na capital notou que sentia muito menos saudade do que esperava. E essa indiferença só fez crescer com a raridade de notícias de lado a lado. Quanto muito, um e outro "tudo está bem" por telefone, a intervalos que foram se tornando maiores e maiores com o tempo. De modo que aquele novo "grito de independência" ao sair da mansão onde sempre viveu, não foi ouvido por ninguém. 
     A queda no padrão de vida foi compensada pela liberdade caótica que Anna passou a experimentar. O apartamento era minúsculo e imundo, num bairro de má reputação. As paredes estavam com uma tinta descascada e velha; As cortinas tinham uma crosta de poeira e fuligem que devia ter se acumulado ali ao longo de vários anos. Os sofás, rasgados e puídos, exigiam cuidado ao serem usados, para que as molas soltas não espetassem costas e bundas. Nos dois únicos quartos, colchões hediondos ofereciam um descanso sujo e desconfortável. Fios elétricos estendidos exibiam lâmpadas penduradas nos cômodos mal iluminados. A geladeira, velha como o apartamento, mais zunia do que gelava. Apenas o suficiente para manter as muitas bebidas daquela moradia numa temperatura tragável.
     Anna foi recebida de braços abertos. A inconsequência dos moradores do apartamento não permitiu qualquer análise mais profunda do problema. Onde ela ia dormir? Resolvia-se. Como ia se manter? Pensava-se depois. O importante era comemorar a chegada da nova moradora, à maneira que mais gostavam: num festival de libertinagem e psicodelia. Assim Anna passou a viver sob o mesmo teto com duas outras garotas, descabeçadas como ela, e um gay que fazia programas como travesti nas esquinas do bairro.
     Aquele irreverente grupo se virava como podia para sobreviver. A escola, óbvio, ficou para trás. As meninas praticavam pequenos furtos nas lojas da redondeza, vendiam as peças e trocavam o dinheiro por drogas. O encarregado da despensa era o travesti, que gastava parte dos ganhos com os programas recarregando as estantes e a geladeira de mantimentos. "Mantimentos" é um modo generoso de definir: vodka, cerveja, destilados dos mais variados tipos e, para comer, linguiça defumada ou algum outro embutido que estivesse em promoção, pão de forma, salgadinhos em saquinhos. Uma dieta suicida. 
     As festas eram constantes. Foi numa delas que Anna se prostituiu pela primeira vez. No dia seguinte não conseguia sair do banheiro. Esfregava a pele com bucha e sabão, debaixo da água quente do chuveiro, sentindo-se suja. Mas depois, inspirada na indiferença com que as colegas de apartamento faziam aquilo, resolveu experimentar mais vezes. Os olhos verdes, rosto e corpo bonitos lhe rendiam bons michês. E ela acabou se acostumando à atividade. Chegou a pensar que era capaz de se acostumar com qualquer coisa. E os convites para eventos foram se tornando mais frequentes. Os eventos em si, mais chiques e exclusivos. Para alguns deles, elas recebiam roupas novas, mais adequadas à "clientela elitizada" que teriam que entreter. 
     Anna não gostava do trabalho, mas do dinheiro que vinha dele. E das roupas, e dos acessórios chiques que ganhava de presente. Aquele era o preço pela alma dela. Não muito alto, se ela parasse para pensar. Mas tudo que ela Não fazia naqueles dias era pensar. O dia seguinte era uma incógnita e um desafio atraente. Uma vida perigosa, em alta velocidade, divertida e arriscada. Tudo que ela poderia querer. 
     Foi num desses "mergulhos perigosos" que Anna conheceu Rino. Um homem um pouco grisalho, magro porém musculoso, alto, elegante. Certamente muito mais velho do que Anna, mas ainda assim atraente e charmoso. Não era especialmente bonito, mas mantinha um certo magnetismo naquele rosto de olhos amendoados, nariz grande e pontudo, lábios finos, queixo proeminente. Individualmente, os elementos de seu rosto davam a impressão de estarem todos "errados", como se pertencessem a outras pessoas e estivessem naquele rosto por acidente. Mas o conjunto funcionava, o todo era até agradável. 
     Os dois tomaram um drink juntos, depois subiram para um dos quartos da casa onde ocorria a festa. Transaram várias vezes, num fogo que parecia incontrolável. Anna achou o trabalho muito agradável naquela noite, nada mais que isso. Rino se apaixonou. 
     Os dois se encontraram algumas vezes mais. Rino pediu exclusividade. Se disse disposto a pagar por ela. Mesmo casado e pai de três meninas, chegou a oferecer casamento para a moça. Disse que por ela, largaria tudo naquele momento. Anna apenas sorria, com seus olhos muito verdes bem abertos. Já tinha ouvido propostas parecidas antes, e nenhuma delas durava mais do que duas semanas. 
     Mas com Rino foi diferente. Ele parecia sincero. Se esmerava para agradar, na cama e fora dela também. Presentes, jantares, flores, passeios, roupas... nada faltava à jovem. Mas ela parecia preferir seu mundo simples de roupas pretas, maquiagem gótica, drogas e irresponsabilidade. Não dava muito crédito àquele admirador , que considerava "igual a todos os outros". 
     Apesar da resistência da amante, Rino não descansava. Procurava sempre uma forma de surpreender, de agradar, de fazer a vida mais bela para Anna. E tanto esforço acabou recompensado. 
     Anna se apaixonou. Ou, pelo menos, acreditou que estava apaixonada. 
     Mesmo assim não quis sair do apartamento miserável onde vivia com os amigos. Rino ofereceu uma casa só para ela, várias vezes. Ela não queria nada daquilo. Aceitava os presentes, e era tudo. Algum intuitivo senso de moralidade a impedia de entregar-se totalmente àquele homem tão cativante. 
     Sua vida seguia sem novos sobressaltos. O principal programa dos fins de tarde era se reunir com os amigos num grande terreno abandonado, perto da estação de trem. Lá, grupos de até dez jovens se encontravam para usar drogas. Era o canto preferido dela, onde se sentia numa espécie de "universo paralelo". Um lugar sem proibições ou leis. Sentia-se livre naquele campo cercado de mato e de ruínas das antigas casas abandonadas de funcionários da ferrovia.  
     Anna notou que um rapaz diferente começou a frequentar aquela roda. Cabeça calva, exceto pelos ralos cabelos loiros que circundavam as orelhas e se espalhavam pela nuca subindo até a testa. Olhos de um amarelo sombrio, como uma tempestade se formando; dentes muito brancos e perfeitos. Os braços eram longos e finos, embora musculosos. Barriga sem um mínimo de gordura. Pernas delgadas e elegantes, apesar das roupas desleixadas de punk. Seu nome era Lovecraft. Lo para os amigos.
     Anna ficou curiosa em saber mais sobre o sujeito. Puxou conversa. Ele disse que trabalhava como jornalista para uma revista de bairro, cobrindo notícias de cultura alternativa e eventos. Ganhava pouco, mas aquele trabalho contava como estágio para a faculdade de jornalismo, e isso era o que mais lhe interessava. 
     A simpatia cresceu rápido. Começaram a andar sempre juntos, e nos encontros no terreno baldio, não se separavam. Nunca houve algum avanço no terreno sexual, embora a atração física fosse mútua e evidente. Mas, além do fato de Anna se sentir completamente envolvida por Lino, parecia que o que a ligava a Lovecraft era de outra natureza, menos física, mais espiritual. Tinham longas conversas sobre tudo. Estava nas ruas há muito tempo, embora jovem. 
     Um dia aconteceu algo especial no terreno abandonado. Um dos drogados que frequentavam o lugar apareceu com uma espingarda calibre doze. Estava disposto a se exibir. Queria impressionar. Houve exclamações assustas e excitadas quando ele mostrou a arma. Depois um silêncio pesado enquanto ele carregava a espingarda e apontava para umas latas sobre um muro em ruínas. Ele atirou e errou. Atirou de novo e acertou uma das latas. Depois olhou em volta, disposto a provocar. Encontrou em Lo a vítima perfeita. Desafiou o jovem para um duelo de pontaria. A verdade é que aquele drogado estava interessado em Anna havia algum tempo mas não conseguia se aproximar porque Lo estava sempre com ela. Resolveu então humilhar o outro, na esperança de que com isso Anna o notasse - o que até então não tinha acontecido. 
     Tantas foram as provocações que Lo resolveu aceitar. Disse que não sabia atirar. Nunca havia empunhado uma espingarda. Aguentou calado os risos do adversário, que se dispôs a dar algumas explicações sumárias. Carrega-se por aqui, arma-se assim, mira-se aqui. Atira-se com os pés bem firmes no chão, um leve coice da coronha, está feito.
     Lo parecia prestar muita atenção. O rival foi o primeiro. Ajeitou oito latas. Acertou quatro. 
     O jornalista pegou a arma depois. Parecia desconfortável com o peso da espingarda. Mais risos. Desajeitadamente, tentou fazer a mira. Risos renovados, que começavam a se espalhar pelos outros integrantes do grupo. 
     De repente, Lo encaixou com firmeza a coronha no ombro e disparou. Fez isso por oito vezes, em poucos segundos, acionando a alavanca de repetição sem o mínimo desvio do alvo.
     A pequena multidão de bêbados e drogados mal teve tempo de ver o que aconteceu. As oito latas estavam no chão, estraçalhadas. O cano da espingarda fumegava. O braço do atirador continuava erguido ameaçadoramente, apesar da arma estar descarregada. 
     Fez-se um pesado silêncio. Só depois de alguns segundos longos e frios, os aplausos e gritos de "hurra" quebraram a paralisia da cena. Lo devolveu a arma ao atônito antagonista, pegou Anna pela mão e, juntos, se afastaram dali. Uma das testemunhas ainda comentou que nunca tinha visto um jornalista aprender a atirar tão bem, com tão poucas explicações. Ninguém entendeu se o descabeçado garoto estava sendo sincero ou irônico. Para todos, porém, ficou claro que Lo era mais do que revelara até então. 




     Reservado e discreto, Lo não falou nada sobre o incidente. Resistiu às perguntas de Anna, limitando-se a evasivas e mutismo. Insistiu para mudarem de assunto, e a conversa terminou ali. 
     O relacionamento de Anna com Rino estava mais forte que nunca. Ele passava mais tempo com ela do que com a família oficial. Apesar dessa proximidade, a moça sabia muito pouco sobre a vida do amante. Também por isso resistia a mudanças radicais na própria rotina. 
     Um ano se passou sem grandes novidades. Anna continuava inconsequente. Lo continuava aparecendo de vez em quando. Tornou-se íntimo da jovem. Sempre queria saber como andava sua vida, seu "romance"... sim, Anna confidenciou a ele o que acontecia. Apresentou um retrato um tanto romântico e fictício do homem por quem estava apaixonada, carregando nas tintas das virtudes e apagando as manchas de defeitos. Lo apenas ouvia, um tanto constrito. Calado, olhando para os próprios sapatos. Anna atribuía aquela postura a uma inconfessada paixão do amigo por ela. Mas, afinal, era ele quem perguntava sobre o outro. Ela simplesmente satisfazia suas curiosidades. 
     Nessa altura o contato de Anna com os pais estava perto da inexistência. Falavam-se uma vez por mês, quando muito. Sempre conversas lacônicas e curtas, por telefone. Para os pais, Anna dizia que estava estudando, que pretendia fazer o exame para entrar numa faculdade. Mentiras. E como ninguém conferia aquelas informações, a verdade permanecia oculta. O primo golpista tinha fugido para o exterior quando notou que a situação estava insustentável para ele. Anna dava sempre uma desculpa quando o pai pedia para falar com ele.  Não havia grande insistência dele sobre isso, e tudo seguia num jogo de aparências. 
     Um dia, durante uma das muitas festas numa casa luxuosa, Anna viu a foto de Rino num velho jornal jogado sobre um cesto no banheiro de visitas. Rasgou a reportagem e levou para casa. Não podia acreditar no que estava lendo. A matéria apontava o suposto envolvimento do rico empresário com o crime organizado. Mais: dizia que ele era suspeito principal em vários inquéritos de tráfico de drogas e armas, contrabando e até homicídio. No dia seguinte, Anna perguntou a Lo se ele sabia daquelas suspeitas. Como era possível que aquele homem amoroso e atencioso fosse um bandido tão frio, um assassino sanguinário? Lo confirmou, explicando por que ficava constrangido quando a jovem elogiava o amante. Ele sabia da real personalidade do criminoso. Furiosa, Anna deu um tapa no amigo jornalista. Disse que ele a havia traído. Tinha que tê-la avisado sobre onde estava se metendo. Depois se afastou, irritada, deixando para trás um rapaz sinceramente arrasado e impotente. 
     Chegando em casa Anna vomitou. Tonturas e vertigens a acossaram. Caiu sobre um dos velhos colchões, vendo tudo girar à sua volta. O desespero a sufocava. Como podia ter se envolvido com um marginal daqueles, um homem tão perigoso? E o pior, nunca ter percebido nada? Está certo que em alguns encontros ele aparecia acompanhado de alguns sujeitos mal encarados, mas ela julgava se tratar de seguranças. Agora ela sabia. Eram capangas. Talvez ele tivesse acabado de ordenar alguma execução minutos antes de encontrá-la como se nada tivesse acontecido, como se tivesse acabado de sair do trabalho no escritório...
     Anna vomitou de novo. Naquela noite, não conseguiu dormir. 
     Aquele mal estar começou a se tornar frequente. Enjoos, tonturas. Uma das colegas de quarto de Anna foi a primeira a desconfiar: melhor procurar um médico. 
     Naquele posto médico de bairro, o mundo de Anna virou de cabeça para baixo mais uma vez. Ela estava grávida. Sentimentos contraditórios a invadiram. Alegria, medo, raiva... pavor por saber quem era o pai daquela criança. Alguém que ela gostaria de não ver nunca mais.
     O que fazer? Fugir? Para onde? Voltar para a casa dos pais? Aquela hipótese francamente não a animava. E se os marginais a encontrassem? O que seria dela e da família? Mas, então, para onde ir sem dinheiro e sem amigos? Pensou em Lo. Ele talvez pudesse ajudar. Mas ainda estava magoada pelo que fizera com ela. Era duro aceitar que, no fundo, o silêncio dele era justificado. Ela estava tão encantada pelo amante que qualquer coisa que alguém dissesse contra Rino soaria como inveja ou ciúme. 
     Estava nessa angústia quando o celular tocou. Era Rino. 
     Anna resolveu ter uma conversa sincera com ele. Exporia tudo. Primeiro sobre a gravidez, depois sobre a vontade de romper o relacionamento. Marcaram um encontro para aquela mesma tarde. Anna tinha esperança de que tudo terminaria bem. 
     Não foi bem assim. A longa conversa começou com os olhos brilhantes e o sorriso largo de Rino ao saber que seria pai mais uma vez. Anna sentiu-se tentada a esquecer tudo a respeito das atividades ilegais daquele homem. Mas não, não poderia viver com aquilo. Além do mais, Rino continuava casado, tinha três filhas, outra família. A história não tinha futuro. Foi o que ela disse a ele. 
     O rosto se contorceu numa máscara seca de dor e surpresa. Rino não tentou negar nenhuma das acusações da reportagem. Orgulhoso, ao notar que aquela decisão era irreversível, não pediu a Anna que reconsiderasse. Apenas disse, categórico, que cuidaria de tudo durante o pré-natal e o parto. A ela, é claro, não faltaria nada. 
Teria todo o dinheiro que precisasse para uma vida mais que confortável, onde quer que escolhesse.
     Mas depois do parto, a criança ficaria com ele. 
     Anna ficou aterrorizada com aquela sentença. Não era um pedido. Não era uma proposta. Era uma ordem. Anna jamais tinha visto Rino daquela forma. Parecia transfigurado. A calma no seu tom de voz era traída pela severidade do semblante duro, impenetrável. Se ele a tivesse espancado, não a teria assustado tanto. 
     Os meses se passaram. Não foi fácil ficar "limpa". As crises de abstinência tentavam enlouquecê-la. Mas durante o longo tratamento numa clínica, a imagem do filho que, mesmo antes de nascer, contava com ela e lutava a seu lado, a animou. Como prometido, nada faltou a Anna. Ela se mudou, finalmente, para um lugar mais agradável, perto do centro. Uma casa pequena mas confortável. Tudo às custas do pai da criança. 
     Nunca mais viu Rino. Nem uma mensagem. Nem uma visita. Nenhum recado no celular. Ao ser rejeitado, foi como se algo se desligasse dentro dele. Limitava-se a sustentá-la, à distância. Todo aquele cuidado tinha pouco a ver com amor. Era mais um sentimento de posse que motivava aqueles gastos com ela. Rino cuidava de sua "propriedade": o bebê que ia nascer. 
     Finalmente chegou o dia do parto. Foi natural, sem intercorrências. 
     Anna não chegou a ver a criança, exceto no momento do nascimento. Depois o bebê foi levado embora, sem piedade. Ela pretendia fugir do hospital com o filho logo depois do parto. Não teve tempo para isso. Não esperava que os capangas de Rino agissem tão rápido. 
     O choro desesperado parecia não se esgotar. Anna saiu do hospital e andou sem rumo durante horas. Não voltou para a casa alugada por Rino. Entrou num ônibus e foi para o apartamento dos amigos, na periferia. 
     Ao chegar lá, encontrou alguém que não esperava rever, depois de tanto tempo.
     Lo estava lá, perguntando por ela. 
     Os dois se abraçaram longamente. 
     Anna contou tudo que tinha acontecido. Desesperada, ameaçou se matar se não encontrasse a criança. No hospital ninguém falou nada sobre o paradeiro do bebê. Todos comprados pelo dinheiro sujo do bandido, com certeza. 
     Lo prometeu ajudar. 
     E saiu dali, sem dizer qual era seu plano.
     Nos dias seguintes, Anna contou ao pai o que tinha acontecido. Revelou toda a verdade sobre o que vinha fazendo na capital, pediu perdão, pediu ajuda. Ele, comovido com a sorte da filha pela primeira vez na vida, prometeu apoiá-la. 
     Anna não poderia imaginar o que ele pretendia fazer.
     Resolveu ela mesma tomar uma atitude. Ligou para Rino. Pediu que devolvesse seu filho. Ele negou. Estava encantado por finalmente ter um filho homem - sim, era um menino - para dar sequência ao nome  dele. Anna teve um calafrio. Sabia que o bandido não mudaria de ideia nem por todo dinheiro do mundo. Então fez algo impensado. Ameaçou o ex-amante. Disse que iria à justiça, à imprensa, e contaria a história toda. 
     Foi um erro.
     Rino não respondeu. Desligou o telefone. Imediatamente Anna percebeu que não estava segura. 
     Decidiu se esconder na zona rural da cidade. O travesti que morava com ela tinha um amigo que poderia escondê-la. Arranjaram um velho carro para que ela pudesse seguir para a fazenda, naquela mesma noite. 
     Quando estava saindo do perímetro urbano da cidade, Anna notou que estava sendo seguida. Um carro largo, potente, de faróis altos, se aproximava dela em alta velocidade. Anna tentou se concentrar na estrada à sua frente, mas não conseguiu. Foi quando notou que o perseguidor derrapou na estrada e bateu no barranco à direita. Anna diminuiu a velocidade e conseguiu notar que outro carro se aproximava. Viu alguns clarões, ouviu o barulho de tiros. Paralisada de medo, não conseguiu pensar. Bateu o carro num dos mourões de uma cerca, encolheu-se toda e ali ficou, esperando. 
     Mais tiros. Gritos. Imprecações. Depois, silencio.
     
     Anna não sabe quanto tempo ficou ali parada, sem conseguir se mexer.
     De repente, ouviu batidas na janela do carro, a seu lado. Trêmula, recusou-se a olhar, afundando a cabeça entre as mãos abaixo do voltante. Então, ouviu uma voz familiar.
     - Anna. 
     Como era possível?
     Lo estava ali, diante dela. Segurava a espingarda calibre 12, a mesma que usou naquele dia, muitos meses atrás, no terreno baldio. Ele sabia onde o dono da arma morava, e provavelmente foi até lá requisito-la.  Na outra mão, sustentava um revólver 38.
     - Anna, está tudo bem. Saia do carro.
     Ela obedeceu como uma autômata. Seguiu o "jornalista" até o carro dele, uns cinquenta metros abaixo, na estrada. Passou ao lado do carro dos perseguidores e notou alguns vultos dentro deles. Estavam mortos.
     - Não olhe, meu bem. Vamos. Adiante, falta pouco. E eu tenho uma surpresa pra você no carro. 
     O interior do veículo se iluminou com a luz simpatia quando a porta foi aberta. Anna demorou para notar o bebê conforto no banco de trás. Ouviu um chorinho manhoso. Uma criança. 
     - Lo... é...
     Anna não conseguiu terminar a pergunta. Lo apenas acenou com a cabeça, confirmando.
     Lo tinha descoberto onde a criança estava escondida. Ficou dias observando a rotina da casa e o esquema de segurança. Conseguiu encontrar buracos na segurança e pegar o bebê. Imediatamente foi levá-lo para a mãe. Chegou no velho prédio da periferia a tempo de vê-la saindo de carro. Notou que outro veículo começou a segui-la. Um carro grande e azul que ele reconheceu como pertencente aos assassinos que trabalham para Rino. Lo sequer estacionou. Sem tempo para mais nada, não teve escolha senão perseguir os bandidos, com o bebê no banco de trás. Foi arriscado, mas era a única chance de impedir que os criminosos fizessem mal a Anna. O resto, ela viu pelo retrovisor e ouviu, assustada, depois de bater no mourão da cerca. 
     O choro veio como uma enxurrada, lavando a alma daquela mulher. 
     De repente, o som de motores tomou conta do ambiente. Lo e Anna olharam para a estrada. Instintivamente, Lo engatilhou o 38. Anna se abraçou ao bebê, pedindo que aquilo não acabasse numa nova separação...
     Logo a estrada ficou cercada por viaturas da polícia federal. Homens armados se aproximaram. Anna ficou com medo, confusa a princípio, imaginando que eram capangas do ex-amante. Mas algo a surpreendeu ainda mais. Foi quando Lo retirou do bolso uma carteira com um distintivo e uma identificação. Mostrou-a para o policial mais próximo, que acenou com a cabeça e foi até o carro ao lado, onde quatro bandidos estavam mortos. 
     Anna ficou olhando, com dúvida no semblante, esperando uma explicação. Ela não demorou. 
     Na verdade Lovecraft era um policial federal disfarçado. Sua "tarefa" era se aproximar da amante de Rino para conseguir informações. O que ele não contava, era que no processo de investigação acabaria desenvolvendo uma sincera afeição pela moça. A ponto de arriscar a própria pele no resgate daquele bebê, mesmo contrariando ordens expressas do superior. 
     Anna ficou com raiva de novo. Deu um soco no braço do falso jornalista, que soltou um gemido de dor. Só então ela notou que ele estava ferido. Provavelmente foi baleado no tiroteio com os homens do carro. A raiva rapidamente se converteu em gratidão. Ela abraçou o policial. Uma forma silenciosa de dizer obrigado.
     No dia seguinte, uma nota triste ofuscou a alegria de recuperar o filho. Anna ficou sabendo por Lo que, na noite anterior, alguém explodiu o escritório de Rino no bairro mais chique da cidade. O incêndio se estendeu por toda a cobertura do prédio de luxo. Estilhaços caíram em chamas sobre a avenida logo abaixo, causando caos no trânsito. 
    O "terrorista", para surpresa e desconsolo de Anna, era seu pai. Provavelmente, ele conseguiu acesso à cobertura dizendo ter informações sobre a filha que poderiam interessar ao bandido. Ainda no campo das hipóteses, ninguém deve ter pensado em revistá-lo... um erro imperdoável. Quando estava cara a cara com Rino, ele acionou um explosivo que trazia preso ao próprio corpo. Dinamite usada por mineradoras - um tipo de explosivo com o qual o velho tinha afinidade, já que tinha licença federal para vender aquele produto em seu comércio no interior. A quantidade foi suficiente para destruir todo o andar do escritório.
    Os dois, o pai e o bandido, estavam mortos.  
     

     Anna chorou baixinho uma saudade que não esperava encontrar dentro do peito. Um carinho que achava inexistente, um afeto por aquele homem tantas vezes distante, que, a despeito de todos os defeitos, jamais deixou que algo faltasse para ela. E que, no último momento, se mostrou disposto a qualquer sacrifício para proteger-la. 
     Naquele momento uma decisão foi tomada. Voltar para o antigo lar, reaproximar-se da mãe, arranjar um emprego, quem sabe até voltar a estudar... Mudar de vida, em resumo. Criar o filho como um homem de bem.
     
     Os próximos passos vieram em cascata. A volta para o interior, a procura por emprego, a volta às aulas para fazer o ensino médio. Muita atividade, atrás de um tempo que parecia perdido para sempre. 
     

     Anos depois, o menino Denis se formava na escola fundamental daquela pequena cidade do interior. Na plateia, durante a entrega dos diplomas, a orgulhosa Anna e a avó do menino, explodindo de felicidade. Ao lado delas, com um sorriso nos lábios, um convidado especial: Lovecraf, um pouco mais careca do que era quando Anna o conheceu, mas com os mesmos olhos amarelos marcantes.
    De mãos dadas, Lovecraft e Anna se olharam com um carinho genuíno. Só se soltaram para aplaudir o filho de Anna no palco, recebendo o diploma.   


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