O caso do pedófilo reincidente


     




     A noite estava fria mas agradável. A lua cheia e brilhante imperava absoluta num céu sem estrelas. Uma ou outra nuvem refletia um pouco dos raios lunares, emoldurando a paisagem. Podia-se ver discretamente os contornos das montanhas mais afastadas, beijadas pela luz. 

     Nesse cenário digno de romance a missão do inspetor Mário Russo não tinha nada de singela. Usando uma camisa de mangas curtas, branca, com gola e botões, uma calça de algodão marrom claro, botinas de lavrador e um chapéu de palha, ele pedalava uma velha Barra Circular azul, com ferrugem no quadro e nos aros. O frio não o  incomodava apesar da camisa fina que usava. A adrenalina o mantinha aquecido e atento. 
     Nenhum observador curioso imaginaria que ele era um policial em ação. O disfarce era importante para não alertar seu alvo. Não queria correr nenhum risco de despertar a atenção do criminoso que estava caçando, e que poderia ficar sabendo de policiais falando com alguns de seus "conhecidos". 
     Mário se aproximou da rodoviária. Havia algum movimento ali, por conta da chegada de um ônibus vindo de São Paulo, e de outro que se preparava para sair com destino a Taubaté. Eram nove da noite. 
     Nos fundos do prédio bem iluminado que abrigava as bilheterias, dois meninos brincavam com suas bicicletas novinhas. Um deles era gordinho, usava camiseta verde com listras horizontais azuis. O outro, muito magro, vestia uma camiseta branca muito puída, cheia de buraquinhos. Os dois pedalavam de um lado para o outro pelo corredor atrás das bilheterias, riam e falavam alto. Não deram muita atenção quando Mário chegou perto deles. 
     - O que vocês estão fazendo aqui a essa hora da noite, molecada? Não deviam estar em casa?
     - E o que o senhor tem com isso? - respondeu o gordinho. - Vai cuidar da sua vida!
     - Menino malcriado. Espera aí que você vai ver. 
     Mário pedalou com mais força em direção aos dois garotos. Imediatamente eles deram meia volta e tentaram escapar pelo outro lado do prédio, rindo muito e falando palavrões. Mas acabaram encurralados nos fundos, que não davam saída para a rua. Mário posicionou sua Barra Circular de forma a impedir a fuga dos garotos e os encarou demoradamente, com expressão séria.  
     - Agora nós vamos conversar. - disse por fim.
     Horas depois, Mário dirigia seu próprio carro rumo ao Horto Florestal. A estrada sinuosa estava vazia naquele início de madrugada. Em sua cabeça, um número martelava com insistência: "17". 
Este era o número de coleguinhas, incluídos os meninos na rodoviária, que tinham ganhado presentes do mesmo sujeito. Para os dois, foram bicicletas; outros ganharam tênis, bolas ou simplesmente comida. Seu estômago se revoltou enquanto os meninos, que ele vinha observando desde que recebeu uma denúncia anônima, contavam o que tinham que fazer para ganhar os presentes. 
     - A gente tem que fazer um jogo... - disse o menino gordinho.
     - Jogo? Como é esse jogo? - quis saber Mário.
     E o menino contou, numa inocência imaculada, como quem narrasse as brincadeiras do dia. 
     - Meus pais não se importam... Nem perguntaram onde eu consegui essa bicicleta - disse o menino mais magro. 
     Mário apertava o volante do carro com tanta força que seus dedos se esbranquiçaram. Não sabia se odiava mais o autor daquela atrocidade ou os pais omissos que permitiam aquela violência. Independentemente da resposta para aquela dúvida, o mais urgente era tirar o pedófilo de circulação.
     Um trabalho recente de pesquisadoras jurídicas conceitua violência sexual como “todo o ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança menor de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança ou utilizá-la para obter estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa”. Uma definição científica, clínica, quase cirúrgica... fria.  Uma definição que Mário conhecia, de leituras recentes... mas que nem passava pela cabeça dele naquele momento. Para ele, o crime sexual contra menores era algo muito mais rasteiro, sujo, revoltante... algo palpável como um tumor... algo com que ele tinha que lidar no dia a dia. 
     O farol iluminava a estrada. O tempo virou de repente, e nuvens carregadas taparam a lua brilhante. A escuridão se tornou profunda. Mário seguia as indicações que havia conseguido com as crianças. Guiou por uns dez quilômetros a partir de Capivari. Notou à esquerda uma porteira fechada e um caminho de terra que se embrenhava mata adentro. Não parou. Seguiu adiante por mais um quilômetro e estacionou o carro num recuo da estrada entre pinheiros gigantescos. Pegou uma lanterna no porta-luvas e fez o caminho de volta, pelo meio do bosque que margeava a pista.
     O inspetor pensou em pedir ajuda para alguém naquela missão. Talvez o Romualdo ou o Bittencourt... ou a própria Julia que, apesar de ser escrivã, já provou mais de uma vez que se virava muito bem em campo. Outra opção seria montar uma pequena equipe pedindo apoio a policiais militares de Taubaté que tivessem experiência e treinamento para ações furtivas. Mas um grupo maior acabaria aumentando o risco de estragar o elemento-surpresa, despertando a atenção do alvo, permitindo que ele fugisse - por melhores que fossem os agentes envolvidos. Além do mais, procurar alguém para lhe dar cobertura demandaria tempo. E Mário não queria perder tempo. Ademais, até onde sabia, o inspetor esperava encontrar um único adversário naquela tarefa. 
     Mário mantinha o facho de luz o mais perto possível dos próprios pés. Apenas o suficiente para não cair em algum buraco. Não queria que a luminosidade denunciasse sua aproximação. A caminhada era difícil. Em alguns trechos a trilha se fechava, bloqueada por arbustos e espinheiros. Mário precisava contornar esses obstáculos, ou atravessá-los à força. 
     Depois de meia hora dessa caminhada hesitante, Mário avistou o que procurava. Um velho depósito de bebidas abandonado. O barracão de alvenaria tinha telhas de barro, uma enorme porta de madeira e amplas janelas envidraçadas. Mário apagou a lanterna e prosseguiu. Cuidadosamente, forçou a maçaneta da porta. Trancada. Resolveu contornar o prédio à procura de uma entrada alternativa. Logo um forte cheiro de urina e fezes agrediu seu olfato. De arma na mão, Mário segurou a ânsia de vômito e inspecionou a grande janela lateral. Ela devia ter uns dois metros de altura por um metro de comprimento. Algumas vidraças estavam quebradas. Mário passou a mão pelo buraco no vidro e removeu a trava do batente. A janela se abriu com um gemido de ferrugem. O policial colocou o 38 no bolso e pulou para dentro. 
     Silêncio. Escuridão. Mal se podia ver a luz da lua, entre nuvens, que entrava pálida pelas janelas sem cortinas. Mário ficou imóvel por alguns segundos, escutando. Depois, a contragosto, ligou a lanterna. 
     O lugar parecia deserto. Alguns caixotes de bebidas. Garrafas vazias sobre a única mesa no amplo salão. Caixas de uísque, engradados de cerveja aqui e ali. Do lado direito, três portas fechadas. Duas eram dos banheiros. A outra, provavelmente do escritório. Do outro lado do salão, as janelas, e mais ao fundo, uma parede sem nenhuma abertura. Mário dirigiu a luz da lanterna para aquele ponto e teve uma visão sinistra.
     Dois spots de iluminação desligados apontavam para uma grande cama de casal. Sobre a cama, bonecas, carrinhos, bolas de diversas cores, ursinhos de pelúcia. Mário entendeu logo. Ali eram gravados os vídeos, tiradas as fotos das crianças em seus "jogos"... Mais uma vez a vontade vomitar se espalhou pelo estômago, provocando uma intensa salivação. 
     O inspetor resolveu investigar a porta do escritório. Também estava trancada. Quando mexeu na maçaneta, Mário ouviu ruídos do outro lado. Uma voz infantil perguntou:
     - Quem tá aí?
     Mário não respondeu. Perguntou de volta:
     - Quem é você?
     - Luzia. 
     - Quantos anos você tem, Luzia?
     - 12. 
     Era uma vítima do pedófilo, só podia ser. Mantida trancada ali, Deus sabe há quanto tempo.
     - Você sabe onde fica a chave desta porta, Luzia?
     - Sei não, o "tio" não deixa a gente ver onde ele guarda. 
     - Está bem, fique calma, Lu. Posso te chamar de Lu? Vou tirar você daí está bem?
     - Tá! - Mário notou o entusiasmo da menina ante a expectativa de ser libertada. 


     O detetive pegou uma gazua no bolso da calca e enfiou no buraco da fechadura. A tranca era muito simples, não ofereceu grande resistência. Mário abriu a porta e viu uma menina magra, vestida apenas com uma camisola branca. Tinha olhos fundos, cabelos pretos, e o tamanho de uma criança de oito anos. 
     - Venha cá, meu bem. Vamos sair daqui. 
     Luzia estendeu as mãozinhas ossudas em direção a Mário, mas não chegou a tocá-lo. Naquele instante um rosnado feroz quebrou o silêncio. Mário se voltou com a lanterna e viu um homem magro na porta aberta do barracão. Ele tinha cabelos na altura do ombro. Estava cercado por dois pitbulls de ar ameaçador. "Caramba, com esses 'guarda-costas' eu não contava", pensou Mário. O rosto do homem estampava surpresa e raiva. Ele gritou, com voz aguda:
     - Nero! Brutus! Vão!
     Furiosos, os dois cães se atiraram pelo depósito atropelando garrafas vazias e saltando sobre engradados, na direção do detetive. Ele mal teve tempo de sacar a arma e atirar contra um deles. O tiro acertou o animal bem na cabeça, matando-o instantaneamente. 
     Antes que Mário pudesse atirar de novo, o outro cão se jogou sobre ele. Para proteger o pescoço, Mário usou o braço direito. O peso do cachorro sobre seu corpo o jogou no chão. Mário sempre achou que ser canhoto era uma vantagem numa briga, mas isso pouco influiu no ataque daquela besta ensandecida. Quando caiu com um baque, acabou soltando a arma. 
     O pitbull não soltava o braço de Mário. Sua jaqueta ficou em frangalhos e ele sentiu o sangue ensopar sua camisa. A dor atravessava o antebraço como um milhão de punhais ferventes. Com o canto do olho Mário notou a menina com expressão aterrorizada, e o homem alto e magro atravessando o depósito, no rumo de onde seu revólver tinha caído.
     Não havia tempo para uma estratégia. Com a mão livre, Mário vasculhava o chão à procura de algo para se defender. Seus dedos encostaram numa garrafa enquanto o cachorro rosnava furiosamente. Ele bateu uma vez. O cão soltou um ganido estridente e continuou atacando. Mário bateu com mais força e a garrafa se quebrou na cabeça do animal. Mesmo assim o ataque continuou. Juntando o que restava de suas forças, Mário deu várias estocadas com o gargalo quebrado na garganta e na cara do pitbull. Ele ganiu, mas ainda resistiu por alguns segundos antes de ficar imóvel. Nem depois de morta a fera relaxou a mordida. Mário teve dificuldade para afastar os dentes, enterrados fundo no antebraço.
     Então ele se lembrou que o perigo não tinha passado. Procurou o revólver desesperadamente, mas não achou. Quando tentava se levantar, ouviu cinco tiros. Reconheceu o estampido da própria arma. Confuso, olhou para o próprio corpo para verificar se tinha sido atingido, antes de notar o homem magro desabando à sua frente, de costas. A menos de cinco metros dele, ainda apontando o revólver, Luzia permanecia com olhos muito abertos, repletos de lágrimas. Ela se antecipou ao pedófilo e conseguiu pegar o revólver no chão antes do marginal. Como encontrou coragem para atirar, ou forças para puxar o gatilho, Mário não se atrevia sequer a imaginar. 
    O inspetor se aproximou do homem. Já estava morto. Então se dirigiu para a menina. 
     - Me dê a arma - disse, com voz firme mas tranquila.
     Verificou o tambor. Vazio.
     Já era quase manhã quando o barracão ficou tomado por policiais e peritos. O homem morto foi reconhecido como um notório abusador sexual que tinha cumprido pena por estupro e estava em liberdade há dois anos. Mário se lembrou dele.
     No barracão os investigadores encontraram material pornográfico, grande parte com crianças. Fotos em que se reconhecia o cenário montado nos fundos do velho depósito, descoberto por Mário. Álbuns e mais álbuns mostravam menores em atos libidinosos entre si, ou com o próprio abusador. Também havia dezenas de vídeos, todos com o mesmo ambiente, que misturava a pureza infantil dos brinquedos com o apelo sinistro da cama de casal. 
     Em um dos vídeos, Mário reconheceu Luzia. Abusada daquela forma hedionda, com a pré-adolescência marcada por tamanha violência, a garota não parecia ter real noção do que houve com ela. Ficou o tempo todo quieta num canto, olhando para o vazio, sem responder as perguntas dos paramédicos.
     - Está em choque - disse um médico. - Não é para menos. Deve estar trancada aqui há pelo menos uma semana. Não sei quanto tempo mais iria aguentar essa situação. Se você não aparecesse...
     Mário não se consolou com o comentário. Já estava se condenando por não ter agido ainda mais rápido. Talvez ainda naquela manhã, quando recebeu a denúncia anônima. Mas a voz no telefone foi lacônica, não deu detalhes, endereços, nomes, nada... apenas alertou que havia um pedófilo em atividade, e indicou onde encontrar duas de suas vítimas: brincando na rodoviária com os "prêmios" conquistados depois da violência. 
     -Sabia que não há nenhuma notificação de desaparecimento desta criança?- perguntou Mário ao médico. - Ninguém se importou, ninguém deu pela falta da menina. Quem são os pais dela? Onde eles estavam? Ela tem pais em casa? Quem cuida dessa criatura? No caso de Luzia, e de muitas outras vítimas como ela, são duas violências. Primeiro a negligência, depois a agressão sexual. 
     À medida que o policial verbalizava estes questionamentos, seu braço doía mais... como uma reação nervosa ao desamparo e à negligência que marcavam a vida de Luzia, tão prematuramente. 
     Os próximos dias seriam de muito trabalho para identificar todas as vítimas, localizar as famílias, notificar o Conselho Tutelar e a Vara da Infância. 
     O braço enfaixado de Mário latejava sem parar, mesmo sob efeito de analgésicos.
     - Aquele monstro quase te arranca o braço, Mário - disse a socorrista que o atendeu.
     - Não o chame de monstro. Ele só fez o que ensinaram pra ele. Não gostei nem um pouco de matar os cães.
     Mário olhou para o corpo magro estendido no chão, a alguns metros:
     - Na verdade, o único monstro aqui teve o que mereceu.




     O bairro de Santo Antonio é um morro cortado de vielas de terra, sem infraestrutura nem ordem. As casas, muitas delas nada além de barracos, se amontoam nas margens de vias estreitas. Fruto de anos de ocupação irregular da encosta e do descaso do poder público, a área toda parece uma teia de pequenos caminhos entrecruzados. Achar um endereço num lugar desses é um desafio. Mas, dependendo da persistência, não é impossível. Levou duas semanas, mas valeu a pena.

     O detetive encontrou a casa que queria. Um imóvel de madeira podre, com o telhado em péssimas condições, numa viela ladeada por esgoto correndo em céu aberto. Ele bateu na porta. Ninguém atendeu. Insistiu. Ouviu uns ruídos de garrafas tilintando. Aguardou. A porta se abriu. Mesmo com o fedor do esgoto na rua, conseguiu sentir o hálito alcoólico que se desprendia do dono da casa - um homem não propriamente gordo, mas de ventre proeminente, usando uma camiseta cavada, barba por fazer, cabelos desgrenhados. Os olhos injetados completavam os sintomas da embriaguez permanente.
     - O senhor é o pai da Luzia, uma menina de doze anos?
     - Você achou ela? - retrucou o homem, com a voz pastosa, tropeçando na língua dormente - Ela saiu de casa faz dias, sem pedir ordem. Vai ficar de castigo.
     O policial ficou feliz pela menina, sob os cuidados do Conselho Tutelar e longe da indiferença daquele homem.Mas soube imediatamente que o sujeito também precisaria de ajuda, antes que se matasse de tanto beber. O detetive empurrou o interlocutor para dentro do casebre. Entrou e fechou a porta atrás de si.
    - Agora nós vamos conversar - disse Mário, estralando os dedos da mão esquerda.  



P.S. - Inspirado num sonho que tive.


Consulta técnica: site ambitojuridico.com.br (Azevedo & Guerra, 1989, p. 42)



(Ilustrações de Marcos Correia)




     
     




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