Zaratustra Conselheiro





     Friedrich acordou com um forte calor a envolvê-lo por todo o corpo ao mesmo tempo que uma intensa luz forçava passagem por suas pálpebras.
     Tentou abrir os olhos mas uma dor aguda o impediu. Colocou a palma da mão sobre a testa e ergueu os ombros do chão com dificuldade. Notou que estava coberto de poeira, com a boca seca e a cabeça latejando. Lembrou-se vagamente da última crise - a mais longa em meses - em que a dor, a vertigem e a náusea quase o levaram à loucura. Mas todo aquele sofrimento não se comparava à sensação que agora percorria todos os seus nervos.
     Espiou em redor com os olhos semicerrados, ofuscados pelo brilho do sol. À sua volta tudo era terra seca, sulcada de grandes rachaduras. Mais adiante umas vegetações espinhentas e ralas. Atrás de si, alguns casebres de uma aparência que ele nunca tinha visto antes. Feitos de madeira, com buracos nas paredes carcomidas, telhas de compensado. E o calor, o insuportável e sufocante calor. 
     

     Levou um tempo até Friedrich notar um enorme grupo de maltrapilhos reunidos. Estavam a alguns metros de onde acordou. No meio deles, provavelmente sobre uma bancada ou uma pedra, destacava-se um homem de visual surpreendente.
     Longos cabelos e barba pretos, emaranhados numa capa de sujeira. O rosto fino, o pescoço magro, usava uma grosseira bata branca recoberta de manchas de terra. Aquela insólita figura segurava um cajado com a mão direita e gesticulava freneticamente, cortando o ar com os movimentos dos braços enquanto pregava. 
     _ O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão - gritava o  profeta numa língua desconhecida.  
     Mesmo sem nunca ter ouvido aquela pronúncia antes, de alguma forma  Friedrich, contra toda a lógica, entendia tudo que o estranho falava, como se tivesse misteriosamente despertado em seu cérebro algum dicionário universal.
     Prestou mais atenção àquele grupo estranho de homens-sombras. Vestidos em trapos cobertos da poeira daquele deserto, alguns segurando espingardas, outros com foices e facões. Vez por outra brandiam as armas em resposta aos brados trovejantes do homem de bata, indiscutivelmente o líder daquela comunidade de espectros.
     De repente um estampido fez Friedrich voltar a atenção para a colina ao poente. Ainda teve tempo de ver um fio de fumaça se dispersando no ar, enquanto uma das mulheres perto dele caía ao chão, embebida no próprio sangue. Seguiu-se uma saraivada de estampidos, despejando balas sobre a multidão. Os miseráveis caíam como frutos maduros. Os que escapavam das primeiras salvas, em vão, tentavam se organizar para responder àquele ataque. Logo um estrondo maior ecoou pela areia, e um obuz explodiu num amontoado de casebres, reduzindo-os à palha de que foram feitos. 
     O terror se apossou da mente dolorida de Friedrich, congelando seus músculos e embaçando seu raciocínio. Só conseguia assistir... passivamente observava aquele massacre sanguinolento. Assim se passaram os minutos, as horas, a tarde inteira. Soldados em uniformes só um pouco menos rotos que os andrajos daqueles inimigos famintos, lançavam-se sobre os aldeões com uma sanha assassina. Baionetas caladas atravessavam as carnes. Alguns jagunços ainda com ânimo se atiravam sobre as tropas com os facões erguidos e causavam uma ou outra ferida antes de tombarem recheados de chumbo. Assim se passou por um longo tempo, numa repetição tétrica do massacre; um pesadelo que era o pior inferno jamais imaginado.
     Quando o estribilho de sangue finalmente arrefeceu, um soldado apareceu com uma carga sombria. Trazia nas mãos, pelos cabelos, a cabeça do homem de bata separada do corpo. O líder estava morto, como logo mais todos estariam. Mas daquela cabeça de olhos vazios, emanava uma terrível dignidade. Uma glória absurda conquistada com a própria imolação. Uma arrogância altaneira de uma cabeça que se preferia cortada a abaixada. 
     Tomado pelo terror Friedrich cobriu o rosto com as mãos e gritou por socorro. Quando abriu de novo os olhos, ardendo em febre, na penumbra de seu quarto, percebeu delicadas mãos femininas trocando uma compressa de água fria sobre seus olhos.
     - Calma, já passa - disse a voz doce de Lou Salomé.
     Longos minutos se seguiram até que os últimos resquícios da crise desapareceram totalmente. O filósofo esforçou-se por rememorar o pesadelo. Não as cenas de carnificina, não as expressões de vítimas e soldados... mas a essência daquela cabeça cortada. Aquela dignidade mórbida de olhos sem vida. Aquela grandeza que experimentou em meio ao delírio, nunca antes experimentada. 
     Friedrich ergue-se da cama e cambaleou até a escrivaninha, desorientado e exausto. Acendeu uma vela, tomou a caneta e a tinta, e rabiscou uma única palavra sobre uma folha de papel, ainda sob o efeito daquela dolorosa inspiração: 

"Zaratustra"

     Não teve forças para mais nada. As ideias inspiradas pelo delírio fervilhavam na mente do filósofo, num burburinho indomável. Descrever aquela intuição de forma inteligível exigiria repouso e concentração. Tarefa para outro dia, longe dos efeitos nefastos da enxaqueca.
      
Nota: "Assim falou Zaratustra" foi escrito entre 1883 e 1885 pelo filósofo Friedrich Nietzche. A guerra de Canudos, na qual se destacou  o carismático Antonio Conselheiro, terminou em 1897, muitos anos depois da feitura do livro de Nietzche. Portanto, qualquer semelhança deste conto com a realidade não vai além dos nomes dos personagens. Da mesma forma, qualquer comparação entre o profeta Nietzchiano e o beato do sertão, não passa de um exercício de imaginação.
     

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