30 centavos




     Foi com grandes esperanças e uma certa ansiedade que Jonas recebeu o telegrama das mãos do agente postal. Leu o endereço do remetente: "Companhia de Açúcar do Baixo Jaguari". Sua palpitação cresceu. Sorveu as palavras seguintes com entusiasmo: "compareça quanto antes pt tratar vaga emprego pt".
     Jonas entrou na sala e anunciou para a mulher que teria que fazer uma pequena viagem para negociar o emprego na usina. Clara permitiu-se um rubor de esperança nas faces branquelas. O filho mais velho olhou com indiferença para o pai e limitou-se a grunhir um "ah". O filho do meio só levantou os olhos do gibi que devorava, e retomou imediatamente a leitura. 
     Julio, o mais novo, o mais gordo, o mais quieto dos três filhos de Jonas e Clara, estava no quarto, dedicando-se a sua estranha mania: ler grossos livros de capa dura. O pai foi até ele e deu a notícia. A alegria se expandiu no rosto tímido do garoto. Levantou-se da cama, correu até Jonas e o abraçou.
     Era preciso tratar da viagem. O velho calhambeque estava em petição de miséria, mas talvez aguentasse. Julio implorou para ir junto. Insistiu tanto que a mãe acabou permitindo que ele faltasse à aula naquela tarde. 
     Jonas contou os tostões de que ainda dispunha. Já não tinha mais crédito no posto de combustíveis. Os dez contos que restavam teriam que dar para o gasto. Pagou à vista, dando adeus às notas como quem se despede pra sempre de um ente querido.
     Logo depois se animou. Conseguiria o emprego, certamente. Julio compartilhava dessa confiança com um silêncio respeitoso e submisso. 
     A sorte é assim. Brinca com a alma da gente. Numa mesma manhã o coração experimenta sentimentos que vão da alegria ao desespero, com poucas horas separando os dois extremos.
    Acontece que uns dois quilômetros depois do portal de saída da vila, o calhambeque entregou os pontos. A fumaça esbranquiçada que saía do radiador não deixava margem para dúvidas. Aquilo não iria mais a lugar nenhum. Jonas tinha certeza que se não se apresentasse ainda naquela tarde, perderia a vaga. Só não chorou ali mesmo porque estava sob o olhar penetrante e intrigado do filho.
     Voltaram os dois à pé, comendo poeira, para a vila. Jonas ia sem pressa, como um condenado a caminho do cadafalso. Mãos enfiadas no bolso. Sentiu alguns objetos ali guardados. Puxou para fora três pequeninas moedas de dez centavos. 
   Julio notou a indiferença com que o pai observou aquela descoberta. Não dava pra fazer nada com aquela quantia. Ou quase nada.
     - São trinta centavos, pai. - atreveu-se a comentar.
     Jonas apenas olhou para o filho, com profundas olheiras de tristeza. 
     - É o preço exato do bilhete da loteria.
     Jonas franziu as sobrancelhas e repuxou os cantos da boca numa careta de amargura. Teve vontade de dar um safanão no filho, mas nunca fizera isso antes. Não seria naquele momento que começaria essa prática. Limitou-se a mostrar seu desapontamento jogando longe as três moedinhas.
     Julio ficou mortificado. Horrorizado com aquele desperdício e fulminado de vergonha por ter falado ao pai sem ter sido consultado. Mesmo assim, atrasou um pouco o passo e, quando Jonas não estava olhando, recolheu as três moedinhas caídas na beira da estrada.
     - Vamos logo moleque! - gritou o pai.
    Chegando à vila, Julio foi direto para a venda de seo Miguel. Apesar de gordinho e apaixonado por doces, a intenção não era comprar nenhuma guloseima. O menino pediu um bilhete do sorteio da Loteria que correria dali a pouco. Apertou aquele pedaço de papel entre os dedos rechonchudos, como se fosse um rosário.
     Jonas estava à mesa do almoço, acabrunhado, evitando a todo custo o olhar vítreo e resignado da esposa. Os dois filhos se preparavam para comer. Julio não estava presente.
     De repente a porta da sala se abriu num baque. Julio sacudia um pedaço de papel nas mãos, como um desvairado, e gritava sem parar:
     - Ganhamos. Ganhamos o prêmio. 
     Jonas foi até ele e entendeu que o filho tinha recolhido os trinta centavos e comprado um bilhete da loteria. Conferiu os números e constatou que o menino falava a verdade. Nem se dignou a comentar o fato com a esposa. Saiu correndo pela porta, seguido de perto por Julio.
     Foi direto à oficina do Moacir, onde havia deixado o caminhão de leite que usava para prestar serviço aos fazendeiros da região, recolhendo os galões e levando até a cidade. O pequeno   Chevrolet tinha quebrado meses atrás. O conserto estava pronto há muito tempo, mas sem dinheiro para retirar o veículo, Jonas tinha ficado também sem aquela fonte alternativa de renda. Desgraça que atrai desgraça...
     A negociação foi rápida. Preço total do conserto, quatrocentos e noventa e nove réis e setenta centavos. Valor do prêmio da loteria, quinhentos réis. Jonas entregou o bilhete ao mecânico e pegou o caminhão. 
     Na saída da oficina, olhou para o filho radiante. Passou as mãos nos cabelos do moleque - um dos poucos carinhos que fez em toda sua vida - e deu a ele os trinta centavos de troco do conserto. E disse:
     _ Esse dinheiro vai te sair caro, moleque. Um dia, quando você menos esperar, eu vou cobrar de você com juros e correção.
     Julio não entendeu bem aquela coisa de juros e correção, mas     imaginou que estava assumindo uma dívida com o pai. E pelo sorriso de Jonas, concluiu que aquilo não era ruim.
     Os dois embarcaram no caminhão de leite e se afastaram da vila, levantando uma copiosa nuvem de poeira.




     Como isso é um conto e não um romance, vamos pular uns trinta anos na linha do tempo.
     Jonas vai morrer e sabe disso. Preso a uma cama, com o médico, um vizinho, dois ou três conhecidos e o filho mais novo na casa, ele apenas espera.
     Julio sente que precisa falar ao pai sobre a antiga dívida nunca esquecida. Os trinta centavos que ganhou naquela tarde poeirenta. O pai nunca cobrou.

     Jonas abre os olhos, e num momento de lucidez antes do fim, responde:
     _ Você sabe onde estão seus irmãos?
     Silêncio.
     _ Depois que sua mãe morreu só você manteve contato. Me visitou sempre que lhe foi possível. Sempre me amparou e protegeu, mesmo sem eu perceber. Como naquele dia dos trinta centavos. Foi meu companheiro e amigo. Mesmo nos momentos em que fiquei mais rabugento e irritado. Eu nunca cobrei aqueles trocados porque, desde que eu te conheço, você não tem feito outra coisa senão me pagar. E me paga sem me dever coisa alguma.  
     Depois que Jonas fechou os olhos pela última vez, Julio saiu da velha casa e notou um entardecer magnífico queimando o horizonte com um vermelho vivo. Pensou no que o pai lhe disse e chegou à conclusão de que, no saldo da vida, as contas estavam todas em ordem.

FIM



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