Ao menos um

     Chamava-se "Ao menos um".
     Nome no mínimo estranho para um grupo de corrida.
     Grupo, diga-se a tempo, que mal merece esse nome, t~ao heterogêneos eram seus integrantes.
     Mas eram unidos, cada um em sua individualidade. E essa amalgama que os unia era justamente a paixão pela corrida.
     O motivo do nome era o compromisso de, todos os dias, pelo menos um integrante do grupo dedicar alguns minutos ao saudável hobby. "Ao menos um", rezava a cartilha dessa excêntrica equipe.
     E o único mandamento desses apaixonados foi colocado em pratica por anos a fio. Alguns integrantes entraram na terceira idade enquanto outros davam boas vindas `a fase adulta. Uns eram promovidos, outros resolviam sair do emprego e mudar de vida. Alguns se casaram, outros se separaram, todos tocaram suas vidas tendo sempre como ponto de convergência a bela e larga avenida, onde espantavam para longe as preocupações em rápidas passadas cheias de alegria e vigor.
     Mas nada `e para sempre. E a sombra do fim não teve nenhum pudor em ameaçar o animado "Ao Menos Um".
     De repente os compromissos diários afastaram o m'edico do grupo. O empresário foi o próximo a se render `a rotina sufocante. O office boy, o mais rápido da equipe, acabou abandonando os treinos por necessidades urgentes: trabalhar em escala dobrada pra sustentar a família. E assim, por um motivo ou outro (em que a preguiça pontuou mais de uma vez) praticamente todos se afastaram das corridas.
     Um belo dia o guarda noturno, ex-obeso que começou a correr pra passar no concurso publico da prefeitura, tornou-se o único a comparecer aos treinos matinais.
     Foi assim um dia... dois... uma semana inteira. Correu solitário por um mês. Dois. Seis meses se passaram sem companheiros de corridas.
     O guarda noturno acabou desanimando. Afinal, engana-se quem acha que a corrida `e um esporte individual. Na verdade `e uma pratica solidaria e coletiva, em que todos se animam mutuamente; em que a pequena conquista de um `e motivo de alegria para outro. Sem esse combustível da camaradagem, pode-se at`e vencer, mas `e quase impossível persistir.
     Com uma certa melancolia, o guarda noturno percebeu isso. Resolveu, por`em, dar-se uma despedida antes de abandonar aquele h`abito cultivado com carinho por tantos anos.
     Naquele dia acordou bem cedo. Colocou os adorados tênis de corrida e foi para o local de treinos. Comecou os movimentos de alongamento com um gosto amargo de adeus na boca.
     Foi quando sentiu um leve toque no ombro. Ergueu a cabeça e reconheceu o medico companheiro de tantas provas. Ao lado dele, o empresário que nao aparecia ha meses. Ate o office boy, que conseguiu um emprego melhor, voltou a ter tempo para a equipe. Em redor deles todos os antigos companheiros se preparando para mais um treino, como se nunca tivessem interrompido aquela alegre rotina.
     Nunca antes o nome "Ao menos um" fez tanto sentido como naquele instante.

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