Visita



Por um desses mistérios que nos assaltam de forma inesperada, desfez-se o véu que separa as épocas e mantém as distâncias. Milagrosamente, ao transpor uma porta, ele se viu num quarto pequeno e modesto, equipado com mobília simples, impessoal, decorado apenas com dois retratos na parede, duas gravuras esboçadas e uma pintura pequena sobre um cabideiro.

Numa mesa se apertam uma bacia e um jarro para a higiene pessoal; uma escova; outra jarra com água para beber e um copo. Sobres estes objetos, um espelho. Na cama, travesseiros e uma colcha vermelha.

Montagem com ilustração de Van Gogh

Ele conhecia aquele lugar. Um espaço que escondia beleza na simplicidade. Tinha visto aquele quarto em centenas de reproduções pela internet, em revistas, jornais. Soube, imediatamente, que estava em Arles.

Aquilo era impossível, a despeito de estar acontecendo. E tal como Gregor Samsa, que reagiu com certa naturalidade ao se ver transformado em inseto, ele também não se descontrolou, nem tentou entender o que se passava. Ficou mais interessado em explorar as sensações que aquela experiência única lhe proporcionaria.

Sentou-se numa das cadeiras, comovido com a austeridade e absoluta falta de luxo daquele ambiente. O estoicismo levado ao extremo. Apenas o indispensável, ou talvez menos que isso.

Estava nessa contemplação quando ouviu o ranger da porta se abrindo.

Um homem ruivo adentrou o quarto. Tirou o chapéu e, só depois de se sentar sobre a cama, notou o intruso.

_ Ah, você chegou _ disse, sem demonstrar qualquer surpresa, como se aquela visita fosse esperada.

O homem aparentava trinta e poucos anos. Olhos doces, semblante sereno que parecia esconder, entre as sobrancelhas crispadas, angústias interiores. Barba e bigode vermelhos emprestavam uma irresistível dignidade ao rosto sóbrio.

_ Desculpe, não tenho nada a lhe oferecer, nem mesmo um chá, neste quarto de campanha.

_ Não se incomode com isso _ conseguiu balbuciar o visitante. _ Está tudo bem?

_ Não, não está _ respondeu o ruivo. _ Gauguin quer me abandonar. Ele se acha maior do que eu, melhor, superior em todos os sentidos. Talvez seja, de fato. Talvez nada do que eu faço tenha qualquer valor...

O intruso reparou nas orelhas do anfitrião.  Nenhum sinal de ferimento ou curativo. Teve uma vontade insana de pedir a ele que não fizesse o que fatalmente iria fazer; pedir que acreditasse em sua visão - seu passaporte para a eternidade...

Mas apenas se calou.

Não sabe quanto tempo se passou, ele na cadeira, o outro sentado sobre a cama resmungando palavras desconexas: "girassóis", "campos dourados com corvos", "este quarto... Uma pintura... uma perspectiva original em sua falta de espaço...".

_Preciso ir embora _ disse o visitante, quebrando a magia.

Já na porta, virou-se e cedeu à tentação de fazer uma pergunta:

_ Você gostaria de dizer algo para... Alguém?

_ O que eu quero dizer está no meu trabalho_ respondeu o ruivo, mergulhando novamente em seus devaneios de flores amarelas, camponeses sofridos e noites estreladas. 







Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas