Apartheid

     Essa falta de paciência, essa pressa doentia, essa vontade de resolver tudo antes do problema se apresentar completamente… é a perdição. É o caminho de Kahlo. Foi o que o levou a comprar a doze que agora acaricia, devidamente lubrificada antes de ser guardada em cima do guarda-roupa.
     Ele afasta uma velha caixa de sapatos cheia de retratos tão antigos que parecem pedaços da vida de outra pessoa. E coloca a arma encostada na parede. Não tão ao alcance da mão a ponto de permitir uma burrada, nem tão longe que se torne inútil numa emergência. 
     Lá fora o tempo virou de vez. Fechou o céu, coberto de nuvens verde-cinzas de borrasca. Os trovões se ouve ao longe - "já cai tempestade em Degoviga" - e em redor do velho sobrado, aparecem as primeiras gotas de chuva, pesadas e sonoras como cascalhos.
     Kahlo afastou a cortina de seda e olhou pela janela para a rua em frente. Vazia, com uma luz enevoada e cinzenta, como uma foto em preto e branco onde o verde úmido da tristeza teima em espalhar manchas lúgubres.
     Também o branco inexpressivo da tarde moribunda, ainda não virada em noite, se espalha em reflexos súbitos no vidro da janela. Parecem querer abrir novos buracos nos farrapos da cortina de seda. Kahlo olha para a criança que dorme no sofá. Põe-se a ouvir, esperando o ranger da escada velha do sobrado. Ranger que não ocorre. Nada se move no prédio. Que bom se fosse assim pra sempre. 

     Kahlo pegou de novo a arma. Desceu os poucos degraus da escada que, agora sim, range sob seu peso. Abriu a porta e saiu para rua. A chuva começou a engrossar. A doze foi escondida debaixo da capa impermeável. Os passos na calçada e o ruído das gotas sobre o cimento, únicos sons no quarteirão. Nenhum carro, nenhum outro pedestre ou animal por perto. 
       Não demorou para Kahlo encontrar o que procurava. Uma patrulha do regime na esquina. Os policiais políticos já fizeram outra vítima. Um homem caído, outro em pé, cercado pelos agentes, sendo agredido com violência. O caído era negro. O que ainda estava de pé, loiro. O crime dos dois, Kahlo sabia, era estar na rua àquela hora, desrespeitando o toque de recolher. 
    Sem perder tempo, Kahlo se aproximou do grupo. Os policiais entretidos com o espancamento não o notaram até que foi tarde demais. Sem uma única palavra, a doze foi retirada da capa e apontada para o policial mais próximo. Um disparo na cabeça. Os outros agentes se voltaram para Kahlo com os olhos arregalados de surpresa. Rapidamente, mais dois tiros foram disparados. Outros dois policiais caíram sem vida. O último, tentando sacar o revólver, atrapalhou-se com a fivela do coldre. Kahlo aproximou-se calmamente, apontou e disparou uma última vez. 
     Olhou para o negro caído que havia sido espancado pela patrulha e notou que ele estava morto. O rapaz loiro, ofegante e assustado, ainda não entendia o que aconteceu. Olhava para seu salvador com expressão patética. 
     _ Vai pra casa - disse Kahlo, antes de se afastar.
     Kahlo sabia que logo todo o bairro estaria repleto de policiais. Jogou a calibre doze numa lata de lixo próxima e desapareceu num beco escuro próximo. Levantou a tampa de um bueiro e pulou para dentro da rede de esgoto.
     Uma caminhada de duzentos metros por galerias úmidas e fétidas, com esgoto até os joelhos, separava Kahlo de uma grande câmara de onde se abriam diversas passagens. Era como o centro de um labirinto.
     A um canto, dois homens se reuniam em torno de um caixote com uma vela acesa. Kahlo seguiu até eles. 
   _ Está quase pronto - disse um dos dois, estendendo um papel para o recém-chegado.
   Kahlo pegou a vela e a aproximou do texto. Leu com atenção.
"MANIFESTO ANTI-APARTHEID", dizia o título. O texto tinha poucos artigos e terminava com uma ameaça: a discriminação social não seria mais tolerada. Havia igualdade entre as raças… tinha que existir também igualdade de direitos entre os miseráveis e os "bem nascidos". Mas essa igualdade se mostrou muito mais difícil de conquistar do que a racial. Um negro rico era um ser humano no teor da palavra; digno de todos os benefícios sociais. Um branco pobre e faminto, menos que um inseto, sem direito a nada. E vice-versa. O que definitivamente pesa na balança da justiça é a conta bancária. "Isso tem que acabar", rezava o texto manuscrito, iluminado pela vela.
    O documento era assinado por um grupo que se autointitulava Guardiões da Igualdade. Kahlo devolveu o papel aos homens sentados e enveredou por um dos túneis.
     Aquilo para ele sempre pareceu uma contradição; as mais sublimes intenções, os mais elevados valores, condenados a rastejar pelos esgotos da clandestinidade para não desaparecer. Ao mesmo tempo, os piores egoísmos, as mais sujas ditaduras, refestelando-se longe dos subterrâneos, à luz do sol. 
     Acabaria algum dia, essa incoerência absurda?
     Esta era a luta.
     O final, incerto.
     

     
  
     (Pinturas de Marcos Correia)
     
     

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